Rato, o protagonista de Simpatia pelo demônio, atua há cerca de trinta anos como agente humanitário em zonas de conflito. Sua tese, Tratado sobre a violência, facilitou a obtenção de um posto em uma importante organização com sede em Nova York. Rato tinha quase cinquenta e três anos quando sua vida tomou um rumo imprevisto, o que degenerou em um escândalo de proporções não de todo conhecidas.
Agora, aos cinquenta e cinco, Rato é escalado para uma missão com enorme potencial suicida. Na companhia do diretor da agência, que transmite ao subordinado a estranha proposta, Rato assiste a dois vídeos gravados por terroristas da jihad. Um deles mostra a despedida de um refém. Outro, uma execução.
Se Simpatia pelo demônio é acima de tudo um livro sobre transgressão, não é gratuito que inicie com a sequência em que o diretor da agência propõe ao Rato uma violação à regra de não negociar com terroristas. Para que a ligação não seja óbvia, o Rato será demitido. Sua tarefa é fazer com que o dinheiro chegue aos sequestradores sem despertar qualquer suspeita de que a organização e os Estados que a financiam estão envolvidos. Ele aceita. Por conta do escândalo, a demissão da agência aconteceria de qualquer forma. Ele não tem nada a perder.
Rato parte sozinho, auxiliado, a fim de transitar pelas localidades dominadas por facções rivais — onde há regras próprias que mudam constantemente —, apenas por um motorista e um guia locais. Há escombros por toda parte. Estranhamente, ele não apenas é admitido no país como anda pelas ruas com uma mochila contendo o dinheiro do resgate.
O que já era insólito fica ainda mais inquietante com o passar dos dias. Sempre próximo da consciência do Rato, o narrador conclui que “o absurdo e a precariedade da situação iam ganhando terreno sobre a explicação lógica”. É aqui que, pela primeira vez, Bernardo Carvalho se aproxima do teatro do absurdo. De forma um pouco mais direta, ele voltará à carga algumas páginas adiante.
Quando as coisas saem do controle — acuado em uma situação tensa e imprevista —, o Rato, como que para se acalmar, passa a revisitar o passado, relatando eventos ocorridos cerca de três anos antes. São os primeiros movimentos daquilo que resultaria no escândalo.
“Rato” não é um curioso apelido de infância. É o apelido dado pelo ex-amante a quem, por vingança, após o fim do relacionamento, o Rato passa a chamar de chihuahua — escrito, como se para reforçar a ideia de um cão pequeno e frágil, com letra minúscula. Mais uma prova de que nada é gratuito em Simpatia pelo demônio. Ao chamá-lo de Rato, o chihuahua, por sua vez, o associa a “uma de suas presas ou cobaias”.
O chihuahua trabalha em um laboratório de neurociência. Em sua tese (mais cínica do que ingênua), ele tenta provar que é possível abrandar ou erradicar o mal através da hipnose. Com o Rato, a hipnose que ocorre é outra. Como o próprio protagonista admite, “é preciso se deixar hipnotizar para ser hipnotizado”. Rato, numa espécie de crise de meia-idade, precisava do consolo de um novo amor.
O chihuahua é casado com um sujeito a quem o Rato chama de Palhaço, com letra maiúscula. O Palhaço, que de fato trabalha como palhaço, é o gancho para as referências ao teatro do absurdo. Três peças do rival do Rato ganham algum destaque, todas incômodas como os melhores textos de Beckett. Em suas aparições, mesmo fora do palco, o Palhaço lembra os clownescos Vladimir e Estragon de Esperando Godot.
Ainda que não seja um monólogo, Simpatia pelo demônio segue o mesmo tom obsessivo do romance anterior do autor, o controverso Reprodução, com a obsessão do protagonista voltada para o ex-amante.
Tudo indica que o chihuahua é uma espécie de sádico. Para chegar a essa conclusão, o leitor acompanha uma hiperinterpretação de tudo o que o ex-amante do protagonista disse e fez. Quanto mais o Rato analisa o comportamento do chihuahua, menos certezas restam sobre o que de fato aconteceu. Aumentam as dúvidas, aumenta a complexidade e aumentam as suspeitas em relação ao próprio Rato. A única visão, afinal, é a do protagonista.
Ao perseguir de perto a obsessão do Rato, Bernardo Carvalho desfaz as expectativas do leitor, de início imerso na tensão das primeiras páginas. No começo das digressões do Rato, ainda há alguma alusão ao que se passa no presente — cuja figura central é um homem com a perna ferida para quem o protagonista relata sua história. Essas alusões vão rareando, de modo que, lá pelas tantas, toda a narrativa se resume às lembranças e às reflexões. A tensão só será retomada nas últimas páginas. Simpatia pelo demônio, afinal, não mostra a realidade em si, mas a realidade do raciocínio do Rato.
Num livro fortemente influenciado por Bataille, é esperado que o erotismo e violência se comuniquem continuamente. Num dos paralelos mais explícitos, o chihuahua presenteia o Rato com um livro chamado Tratado sobre o amor, um título muito semelhante ao da tese do protagonista. Em Simpatia pelo demônio, tudo é ao mesmo tempo o seu contrário. Se o Rato morrer na missão, terá sido pela violência, mas também por amor.
Apesar da densidade do protagonista e de seu amante, o próprio Bernardo Carvalho ressalta, na entrevista concedida ao Livros abertos, que chamar os personagens de Rato e chihuahua reforça o tom de fábula da narrativa. Qual é a moral, se há alguma? O amor como tábua de salvação para romper com o “percurso miserável de um indivíduo do nascimento à morte”? É apenas uma das muitas ressonâncias de um dos livros mais brilhantes do ano.
Super texto, Camila! Simpatia pelo demônio será a minha primeira leitura do Bernardo Carvalho, obrigada!
Como sempre, um elogio do Livros Abertos equivale a uma ordem (‘vá comprar e ler nesse instante!’). Já adio a leitura dos livros de Carvalho faz tempo. Agora não tenho mais desculpa.
Ah! Você acha que ‘Simpatia pelo demônio’ é um bom livro pra começar? Ou seria mais interessante começar por outro?
Espero que goste do livro, Renato! 🙂
Acho que pode ser interessante ler O filho da mãe e Nove noites antes, que são tão bons quanto Simpatia pelo demônio (ainda que diferentes). É interessante para ver como o estilo do autor se modificou.
Vou fazer isso, Camila! Valeu!
Já estava simpatizando com o livro pelo título dele, ai li a sinopse do livro e agora sua resenha. Esse será mais um livro que comprarei por sua influência!
Espero que goste! 🙂 É um baita livro.
Parabéns pela resenha Camila.
Costumo escrever sobre as obras do Bernardo Carvalho para periódicos universitários. Normalmente, após ler a obra lançada sobre o autor, procuro textos críticos sobre o assunto no intuito de saber o panorama, para só então dar continuidade ao meu projeto acadêmico. No momento, componho também uma resenha para apresentação numa palestra, já cito você na segunda página do meu texto, dando-lhe os devidos créditos. A ênfase no discurso fabular, que faço questão de salientar, em Simpatia pelo demônio, partiu da sua ideia aqui exposta.
Fico esperançoso por haver bons leitores e bons resenhistas como você.
Obrigado pelas dicas.
Erick Bernardes (Professor e teórico)
ergalharti@hotmail.com
Obrigada pela leitura atenta, Erick. 🙂 Só gostaria de esclarecer que a interpretação vem do próprio autor, na entrevista publicada aqui mesmo no Livros abertos: http://www.camilavonholdefer.com.br/dito-com-todas-as-letras-uma-entrevista-com-bernardo-carvalho/.