Temos de escolher muito bem aquilo que fingiremos ser: uma entrevista com Joca Reiners Terron

Um menino contou uma história a outro no pátio da escola e o comentário do ouvinte é uma nova história. Inventamos histórias, pois a manhã da família não pode ser vazia. Se não lembrarmos de algo relevante, se a noite foi insone, inventa-se, preenche-se o silêncio com palavras, com notícias de longe ou reportagens daquilo que vai pelo inconsciente e que irrompe com o despertar, com o abrir dos olhos. É o espreguiçar da expressão, o retorno ao estado de linguagem, sujeitos e predicados escapando da escuridão da inexistência, conquistando uma voz, disse Curt Meyer-Clason. O que é contado por essa voz, seja vinda de lugares distantes ou das profundezas do oceano, é sempre ditado pelo eu, pela ânsia por expressar aquilo que nos rói os intestinos, que nos dá mordidas no fígado, reminiscências intransferíveis, resoluções da personalidade, incongruências do espírito. É, em suma, repetição. Assim não se pode atingir a distância, é improvável que o escafandrista chegue ao fundo. O nômade não traz novidades de longe, só velharias do eu. O sedentário roubou o palco ideal para sua encenação criminosa: a mesa da casa. Criminosos sempre retornam ao local do crime, à mesa da família em todo café da manhã.

— Joca Reiners Terron em Noite dentro da noite

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Reforçar a impressão de uma conexão entre vida e obra é, em certo sentido, um procedimento irônico. Como Philip Roth em Operação Shylock, cujo subtítulo é “uma confissão”, o autor que o adota pretende sublinhar justamente o contrário, ou seja, o caráter ficcional de um relato. Joca Reiners Terron explora a mesma tensão ao utilizar o subtítulo “uma autobiografia” em seu mais recente romance, o monstruoso Noite dentro da noite.

Embora não seja este seu principal registo, Noite dentro da noite não é desprovido de humor. Tentei preservar algo da comicidade — e do ridículo de se buscar uma verdade ou uma revelação a partir da literatura — nas perguntas que se seguem.

Joca Reiners Terron não foi agredido e passa bem.

 

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Você organizou a coleção Otra Língua da editora Rocco. De J. Rodolfo Wilcock a Julio Ramón Ribeyro, os autores selecionados utilizam grandes doses de imaginação e de humor, e as narrativas são, muitas delas, difíceis de classificar. O contato contínuo com autores hispano-americanos — autores diferentes daqueles normalmente associados ao Realismo Mágico — ajudou a moldar a sua escrita, ou você não vê influência direta? De que maneira, aliás, o contato se iniciou e se fortaleceu? Você diria que os autores hispano-americanos, qualitativa ou quantitativamente, ousam ou ousaram mais do que os brasileiros?

É verdade, a seleção da Otra Língua tem autores bem imaginativos, engraçados e que escrevem com grande liberdade formal. São critérios que nortearam as escolhas, aliás. Independentemente da origem, sempre preferi autores que desrespeitem limites entre gêneros literários, ou os misturem. Porém esse interesse pela impureza já existia antes, quando comecei a descobrir e ler alguns autores brasileiros que experimentavam com total liberdade, como Valêncio Xavier (“O mez da grippe”), Sebastião Nunes (“História do Brasil” e “Decálogo da classe média”), os contos de Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Agrippino de Paula. Isso foi nos anos 90, quando passei a me interessar pela prosa brasileira. Antes eu só lia poesia e ensaio, o que talvez justifique meu interesse pelo dinamismo das formas, pela experimentação. Jorge Larrosa Bondía afirmou que “tanto nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo”. Essa ideia do experimental como algo perigoso, vinda de leituras da poesia de vanguarda, moldou minha escrita. Já os hispano-americanos posteriores ao boom ou meus contemporâneos eu comecei a investigar e a ler ali no começo dos anos 2000, e tenho impressão que as escolhas se deram mais por parentesco literário. Eu lia aquilo com o que me identificava, que exibia afinidades com o que vinha fazendo então, como o “Não há nada lá”. Metaliteratura, episódios históricos distorcidos, montagem, fragmentação, incorporação de grafismos, cópia e adulteração etc. Primeiro li o que se encontrava disponível graças ao trabalho do Samuel Leon na Iluminuras: Piglia, Saer, Cozarinsky, Molloy, Aira. Depois comecei a investigar pela internet, em sites e revistas que não existem mais, como El amigo de lo ajeno (editada pelo costariquenho Luis Chaves) e www.poesia.com (por Martín Gambarotta e outros). Também foi fundamental o diálogo com o peruano Reynaldo Jiménez, que publicava a revista Tsé-Tsé (cuja edição 8, de 2000, publicou na Argentina uma antologia importante da poesia brasileira dos 90). Depois comecei a viajar com frequência para Buenos Aires e a conversar com escritores de lá, como Cristian De Nápoli, Santiago Llach, Washington Cucurto, Fabián Casas, Cecilia Palmeiro, Oliverio Coelho, Damián Tabarovsky, Pedro Mairal e tantos outros. Fui convidado para a Feira do Livro de Buenos Aires algumas vezes, depois ao Filba, e também foram fundamentais o ciclo “A Literatura Latino-americana no Século XXI”, dirigido por Beatriz Resende e Paulo Roberto Pires no CCBB-Rio em 2005 (onde conheci César Aira e o próprio conheceu a obra de Sérgio Sant’Anna, que posteriormente traduziria), e o “Encuentro de Interrogación” promovido por Claudiney Ferreira do Itaú Cultural na capital argentina em 2007. Quanto a essa questão da ousadia, não creio que a generalização seja possível. Por exemplo, em entrevista coletiva que fiz com César Aira na Festipoa em 2012 ele afirmou que quase desistiu de seus planos de se tornar escritor após ler “Grande Sertão: Veredas” aos 20 anos de idade, pois não lhe pareceu que seria possível escrever algo de relevante depois de Rosa. Sem pretensão de analisar as diferenças históricas entre a tradição brasileira e as diversas vertentes hispano-americanas, me atraiu o vigor da atual literatura argentina, principalmente, onde existem centenas de editoras independentes e pequenas tribos reunidas em torno das muitas oficinas literárias.

Eu diria que a noção de “travessia e perigo” é onipresente em “Noite dentro da noite”, e não apenas no sentido da experimentação formal, algo que é reivindicado através do subtítulo irônico (“uma autobiografia”), mas sobretudo quando se pensa na temática. Tanto o meio exterior quanto o interior dos personagens, ou aquele interior que é possível acessar, são indistintos ou mutáveis. O espaço intersubjetivo criado pela sobreposição de duas, três ou quatro vozes resulta em uma atmosfera onírica. Desde o início, é como se houvesse uma outra dimensão, uma espécie de universo intermediário incompatível com a objetividade de um narrador onisciente em terceira pessoa e com a subjetividade de um ou mais narradores em primeira — algo que a opção pela segunda pessoa reforça, mas que, sozinha, não explica. Curva de Rio Sujo, um dos principais cenários do romance, fica, com suas tensões e peculiaridades, entre o Brasil e o Paraguai. Há uma ilha, há um lugar em que a água e a terra disputam espaço, há incontáveis terrenos pantanosos, há uma estrada que parece interminável. E há sono e vigília, consciente e inconsciente, lembrança e esquecimento, vida e morte. Mesmo a identidade de alguns personagens, brasileiros de ascendência alemã, parece indeterminada. Toda e qualquer fronteira é questionada, borrada ou suprimida. Tenho a impressão de que tudo o que é definido, enraizado ou adaptado parece a você desinteressante ou mesquinho. É isso mesmo? Aceitar limites claros é uma forma de resignação ou de mediocridade, tanto na vida quanto na literatura? A literatura tem, afinal, a obrigação pôr todo e qualquer recurso a serviço da investigação dessas zonas cinzentas? Você diria que parte de uma experiência pessoal de não pertencimento ou inconformismo — não só como escritor, mas como indivíduo? Por fim, você se vale não apenas de “episódios históricos distorcidos”, para usar as suas palavras, mas também, de acordo com o subtítulo, daquilo que poderia ser sua própria vida. Qual a intenção ou a função do subtítulo?

Bem, muito de seu preâmbulo à pergunta toca naquilo que penso. Pra mim, escrever é um pouco como estar morto, e há uma passagem no livro que explora essa ideia, a de que escrever é dar um passo para trás, para fora da vida, e assim podermos observar com isenção aquilo que acontece do lado de cá. Então a ficção opera como uma espécie de janela que nos permite escapar ao arcabouço psicológico subjetivo numa investigação isenta de pessoalidade, à procura de destruir alguns aspectos realistas dados como certos desde a certidão de nascimento. O primeiro deles a ser combatido, ecoando Saer, é a identidade nacional, uma certeza herdada cujo princípio qualquer descendente de imigrantes deveria observar com desconfiança. Outro, para radicalizar ainda mais esse princípio, é a ideia de que estamos vivos. Será que estamos mesmo? Não creio que todos estejam, dado o comportamento robótico das massas, mas há mais e mais sinais de liberação de amarras pré estabelecidas, basta ver essa verdadeira revolução cultural/genética/identitária que a Geração Y vem protagonizando. Tratei mais especificamente desse embate entre clichê atávico e realidade no romance “Do fundo do poço se vê a lua”. Em “Noite dentro da noite” os personagens têm duas, três e até quatro identidades, lembrando Ret Marut, o anarquista que após ser aprisionado pelo Reich se transformou em B.Traven no México do século passado, e que teve não sei quantas identidades, Hal Croves, Traven Torsvan etc. Hoje temos o exemplo de Elena Ferrante, que é outro lance, mas espero ao menos que esse pseudônimo sirva para que a verdadeira autora não pague impostos. A anarquia nunca foi tão fundamental como hoje para se combater o niilismo do presente, passivo ou ativo. Se houver qualquer subtexto no livro que inspire o leitor a intuir que reinventar a vida também exige não sofrer intervenções do estado, já estarei satisfeito. A função do subtítulo passa por aí: meu verdadeiro eu é “você”, o personagem do livro. Este aqui além das páginas não passa de um impostor, mas isto não me difere de ninguém: a vida adulta quase sempre é uma ficção que contamos a nós mesmos à medida que os anos passam. Sem certa dose de auto-engano ninguém conseguiria sobreviver ao absurdo cotidiano. E o livro trata de imigrantes, em sua maior parte, ou de pessoas cujas identidades lhes foram subtraídas (prisioneiros políticos na Ilha Grande, as crianças no orfanato de Bernburg, militantes clandestinos, guerrilheiros na luta armada); existe certo momento na vida do imigrante em que ele não pertence mais à sociedade organizada de origem nem à de seu destino, é apenas uma estatística, não chega a ser nem um número. Esse estágio de inexistência é ideal para anarquia, para praticar a solidariedade e o amor, a proteção àqueles que devem ser protegidos; o Estado não atende mais às pessoas, e novas organizações precisam surgir de modo a suprirem o básico para uma vida desrobotizada, para a educação e a literatura voltarem a fazer sentido, para as vidas voltarem a fazer sentido. Em meu romance, há apenas um ponto de interrogação, na seguinte frase: qual é a validade de se assassinar um irmão? Como dizia o Kurt Vonnegut, somos aquilo que fingimos ser. Então temos de escolher muito bem aquilo que fingiremos ser. Ou foi o Humberto Gessinger quem disse isso?

Aqui e em várias passagens do livro, você retorna à questão da imigração e à condição do imigrante. Em uma passagem, você fala de Karl como filho “de um imigrante alemão que não lhe transmitiu a língua”, e que “ao mesmo tempo não passava de um caboclo pálido demais para as terras onde vivia”. Como você, Joca Reiners Terron, se vê? Como um imigrante ou como o produto assimilado de uma geração de imigrantes? De que maneira essa condição, seja ela qual for, afeta a sua literatura? E não menos importante: a questão da imigração foi bem trabalhada na literatura brasileira ou fica em segundo plano?

Eu me vejo como muitos de meus personagens, como alguém que ficou a meio caminho de algum lugar, que não é de lá nem tampouco daqui. Para complicar, fora a herança maltrapilha da imigração, fui criado no mato e hoje vivo na metrópole. Essa questão identitária está no centro de meus livros desde os poemas de “Animal anônimo” (2002), igualmente em “Curva de Rio Sujo” (2003), e aparece mais centralmente em “Do fundo do poço se vê a lua” (2010), “Guia de ruas sem saída” (2012) e “A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves” (2013), além de estar na peça que escrevi para o Teatro da Vertigem encenar em 2012, “Bom Retiro 958 Metros”. Os poemas do livro inédito “O sonâmbulo canta no topo do edifício em chamas” enveredam pela mesma obsessão. Matsuo Bashô disse que sua literatura era feita de um elemento estático e de outro fluido. Pois a questão do não pertencimento é o elemento estático de meus livros e da minha vida, creio. O fluido é o que determina que meus livros nunca sejam iguais, apesar da proximidade temática deles. Também é um problema essencial da modernidade, o fato de que não podemos mais voltar para casa. Isso está em Rimbaud, nos filmes de Nicholas Ray, nos livros de Handke e Sebald. No caso de meus livros, percebo que a própria ideia de casa, da impossibilidade de encontrar repouso ou conforto, é colocada em cheque. O que é uma casa para quem vive na calçada, afinal? Essa pergunta estará num livro futuro, quem sabe. Tem um poema do Manuel António Pina que diz que “uma casa é as ruínas de uma casa”. Então chegamos ao ponto em que viajante e caminho se confundem, tornando-se a mesma coisa. O tema foi tratado pelo Noll, por Samuel Rawet, João do Rio, Juó Bananère e João Antônio, mas é pouco, dada a nossa cultura tão mestiça. Já em aspectos mais concretos e cotidianos, me vejo sob imposições identitárias bem mais claras: como filho, pai e marido. E contribuinte, bem à contragosto.

Joca, percebi que você se esquiva de perguntas pessoais. Pra facilitar, lá vai uma 100% pessoal. Várias passagens de “Noite dentro da noite” descrevem a necessidade de se palmilhar o desconhecido ao mesmo tempo em que se ignora o medo. O próprio exercício do narrador, mas também de alguns personagens, envolve a investigação do inconsciente, da memória que teima em desbotar ou sumir, do instante que escapa, das zonas fronteiriças. Boa parte dos fundamentos e das chaves do livro se encontram em zonas, reais ou imaginárias, sombrias, pantanosas, incoerentes. Escrever sempre é, em certo sentido — sobretudo uma autobiografia, mesmo que falsa —, sondar essas zonas escuras. No caso de um livro tão alusivo e metafórico quanto “Noite dentro da noite”, quão difícil foi essa tarefa? Você precisou ignorar o medo de topar com algo desconfortável em algum momento? Escrever é se violentar? O que Joca Reiners Terron descobriu sobre Joca Reiners Terron ao escrever este livro?

Eu me esquivo de perguntas pessoais? Ora essa. Olha, nunca fui analisado ou fiz terapia de qualquer espécie pois quis manter intactas algumas doencinhas. É o contrário do que o Michel Leiris prega em “A idade viril”, acho. Eu costumo tratar o inconsciente e a experiência pessoal como material poético, ficcionalmente. Neste livro não foi diferente, e ele fala muito de algumas feridas bem profundas minhas, mas o que posso falar sobre elas é o que está ali, de modo alusivo. Escrevi esse livro durante bastante tempo, comecei a escrevê-lo em 2007 e nos últimos 4 anos ele dormiu e acordou comigo todos os dias. Pra falar a verdade, ainda não consegui me livrar dele inteiramente, considerando que cortei uns cem mil toques no processo de edição e esse material que ficou de fora em algum momento terá de ser trabalhado, terei de voltar a encará-lo. Durante esse processo foi difícil entender certas coisas, lidar com elas. Fiquei com receio de magoar pessoas próximas, por exemplo, e já tive sinais de que isso aconteceu. Por outro lado, me preocupei muito se alguns assuntos tratados interessariam a alguém, já que pertenciam a um campo tão pessoal. Contudo, o mais incômodo foi me deparar com minha próprias limitações como escritor. Eu me perguntava se alguém entenderia alguma coisa, ou se conseguiria unir os fios que ficavam cada vez mais tênues à medida que a história se desenvolvia. Me passou pela cabeça que poderia ser um jogo de ligar pontos com pontos demais, e quando alguém conseguisse unir todos os pontos, o desenho que apareceria seria algo disforme, um monstro. Bem, eu estava atrás desse monstro. Aos poucos, a cada livro, vou descobrindo que a questão da inadequação se transferiu para meus próprios livros, tão indistintos entre si, e que não parecem pertencer a nenhum lugar. Estou me referindo à solidão que sinto, que tem a ver com a impossibilidade de comunicar aquilo que gostaria da forma que gostaria. Mesmo assim, escrever para mim passou a ser a única maneira possível de voltar pra casa, uma casa que não existe mais.

Existiu alguma preocupação com a ideia de superexposição, como se você estivesse revelando demais de si mesmo ao escrever o livro?

Não e sim. Não porque a realidade comum dos personagens aparece muito distorcida ali, sob perspectiva bastante pessoal. Eu contava com aquele mesmo efeito das histórias familiares quando contadas por vários integrantes de uma mesma família, onde fulano diz uma coisa e sicrano diz outra, tudo a respeito de um mesmo episódio, e o sujeito dessas histórias acaba não se reconhecendo nelas. Essa variação de pontos de vista que a narração em voltas do livro, circular, concentra ou centrifuga. Por outro lado, sim, pois o que eu procurava ao usar a narração dos tios — e Karl e Hugo são baseados em tios verdadeiros. assim como a rata e o homem que se dizia seu pai são meus pais reduzidos ao absurdo — era uma espécie de atestado de veracidade, de autenticidade. Por isso eles são colocados na condição de testemunhas do passado do protagonista, pelo mesmo motivo que apenas parentes mais velhos são autorizados a contar episódios de nosso passado dos quais não nos lembramos mais. E aí morava o perigo da exposição, Mas eu não me contive em nenhum momento, pois conforme o livro era escrito algumas questões se tornaram urgentes. O livro adquiriu pra mim a importância de uma peça acusatória, do tipo que os filhos fazem aos pais, acusando-os de serem responsáveis por isto e aquilo, quando não são, ou são tão vítimas quanto os próprios filhos.

Você diz que os pais são figuras que nos contam coisas de nosso passado, coisas de que não podemos nos lembrar sozinhos. Gostaria de seguir um pouco nessa linha. (a) A narrativa pessoal de uma criança — a narrativa em que ela explica para si mesma quem ela é — parte dessas informações recebidas dos pais? Quão fundamentais são essas narrativas na formação de uma identidade? (b) De que maneira isso se conecta com as histórias fantásticas e divertidas que são, ou eram, contadas a uma criança na hora de dormir? Há de fato uma conexão entre elas? (c) Para além disso, muitas coisas dentro do livro seguem a narrativa oral: Curt Meyer-Clason conta um história para o protagonista; Curt Meyer-Clason tenta captar alguma mensagem a partir do Fenômeno da Voz Eletrônica; a fim de espantar o medo ou fazer passar o tempo, os personagens, quase todos, contam histórias. Com exceção dos livros que o protagonista lê, tudo é dito e ouvido. Por que a escolha do uso intenso da tradição da narrativa oral? (d) Nessa mesma linha, o fato de o protagonista ser mudo tem algum significado? (e) Lembro das passagens que descrevem as esculturas da rata: os comentários que passavam de pessoa a pessoa eram a única coisa que garantia que durassem mais tempo, que fossem lembradas. A narrativa oral tem se perdido? Ela pode fazer uma história durar, ou para isso essa história precisa ser escrita?

Você certamente conhece aqueles versos do Phillip Larkin que dizem “They fuck you up, your mum and dad./ They may not mean to, but they do./ They fill you with the faults they had./ And add some extra, just for you.” É por aí. Não tenho certeza se as histórias contadas pelos pais são fonte exclusiva da narrativa pessoal que criamos, talvez sejam durante certo tempo; depois a rejeição delas, a contranarrativa, digamos, é dominante. Porém existe um período na vida das crianças em que elas ainda não adquiriram linguagem e expressão, então nessa fase o testemunho dos parentes é fundamental para nossa própria concepção desse vazio, para preencher de algum sentido esse buraco em nossa auto-imagem. O Ano do Grande Branco trata dessa sensação comum, creio. O faz-de-conta é a nossa primeira experiência narrativa, e nesse jogo se misturam as fantasias dos contos e causos que ouvimos, além dos primeiros livros que lemos. No caso de “você” havia o fator extra da amnésia, algo que também sofri e que me deu carta branca para inventar. Talvez eu tenha começado a escrever aí. Mas estas não passam de impressões minhas, não sei se fazem sentido. Histórias são contadas normalmente para se passar o tempo. No caso deste livro as histórias servem para recuperar o tempo, é como se “você” procurasse desesperadamente, ao ouvir histórias de Curt, da rata, de Hugo, de todos, reconstruir um mundo, o dele, que já não existe mais ou está em vias de se acabar. Esse tema da “literatura combater o tempo com o único antídoto feito de sua própria matéria” (citação de “Disneynferno ou Despojos de nossa guerra particular contra o tempo”, conto do livro “Sonho interrompido por guilhotina”) é algo que já explorei antes e que me interessa. Também não posso responder se a narrativa oral tem se perdido, mas me dói que as gerações passem e o testemunho delas caia no esquecimento. Nesse sentido, a literatura tem esse papel de ser um memorial de coisas que desapareceram. Uma vida não escrita é uma vida que não existiu.

[Joca Reiners Terron é um bagre ensaboado. Penso que uma boa maneira de conseguir uma confissão é montar uma arapuca. Por que não um jogo de livre-associação? Então armo o seguinte, deixando o bote para o final.]

Uma frase ou uma palavra, Joca. Lá vai.

Barbitúricos.
Preferia não tê-lo feito. Fi-lo porque não qui-lo.

Julio Ramón Ribeyro.
Magro de perfil, descomunal na grandeza.

Tuiuiú.
Mato Grosso é a única localidade do Brasil que tem como símbolo uma ave de rapina.

Engenheiros do Hawaii.
Defalla.

Graphic novel.
Cartum.

Friedrich Nietzsche.
Deve ser doce morrer em Turim. Pavese também morreu lá.

Costelão doze horas.
Gostaria de gerenciar um.

“Despacito”.
A palavra “labirinto” não era tão alardeada desde, hum, Jorge Luis Borges?

Pasito a pasito, suave, suavecito. Mato Grosso.
Uma ave de rapina como símbolo, já pensou?

Pyhareryepypepyhare.
Um líquen como protagonista de romance, já pensou?

Já. Cerveja sem álcool.
No Brasil existe cerveja sem álcool feita sem malte. O curioso é que continuem a chamar isso de cerveja.

Obrigada. António Lobo Antunes.
Ótimas entrevistas e um bom romance (“Cus-de-Judas”).

Astrologia.
That’s bullshit, disse Jim Morrison.

Hamlet (personagem).
Holden Caulfield da Dinamarca.

Acabei de ter um AVC. “The Velvet Underground & Nico”.
Dostoiévski rocks.

Romances policiais.
Bom material de reflexão.

Bolo com frutas.
Que?

Meditação.
Que?

Cerveja quente.
Que?

Andrei Tarkovski.
Vovô.

“Mais amor, por favor.”
Um amigo meu que inventou isso aí, o poeta aRRuda.

Nunca falei mal. Churrasquinho gourmet.
Que?

Cormac McCarthy.
Esse sabe.

Sabe muito. Inverno.
Única estação que interessa vai desaparecer.

Musicais.
Que?

Benno von Archimboldi.
Vovô.

Pizza de milho.
Que?

“House of Cards”.
Perdeu a graça.

Capa de “Noite dentro da noite”.
Maelström.

Literatura.
Lente para observar o mundo.

LP’s.
Me distraem quando preciso.

Pensa bem no que você vai dizer agora, Joca. Lá vai. Lou Reed.
Dostoiévski da ribalta.

Quem é esse Dostoiévski? Oficina de Escrita Criativa.
Faltei.

Vídeos de gatinhos.
Odeio o instagram do Antônio Xerxenesky.

Thomas Bernhard.
Vovô.

Acho que agora estou infartando. Tarantino.
Não tenho paciência.

Camiseta regata.
Que?

Pra fechar: Joca… Reiners… Terron.
Que?

PORRA, JOCA! EU DESISTO AQUI, SINCERAMENTE. ACABOU, ACABOU, DESLIG

5 Comments Temos de escolher muito bem aquilo que fingiremos ser: uma entrevista com Joca Reiners Terron

  1. Graça

    Oi, Camila!
    Extraordinária e criativa entrevista.
    Amei a expressão “bagre ensaboado”.
    O entrevistado é um gênio que nos diverte com seu bom humor, nada como interpretar o não dito.
    Beijos e sucesso!

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  2. Felipe

    Sim escrever é pacas como estar morto.

    Eu não desenvolvi de maneira tão genial esse pensamento como o autor fez na entrevista, mas vez ou outra esse pensamento passa por mim — muito embora eu não escreva ficção, mas queira muito futuramente desenvolver essa capacidade.

    De certa forma chego a esse pensamento quando me comparo, mesmo sem querer, com outras pessoas. É fruto de introspecção mesmo. Escrever, seja lá sobre o que for, requer muito mais um movimento para dentro do que para fora — sei lá, a não ser que o sujeito pratique uma escrita que é meramente descrever objetos “lá fora”. Mas a grande maioria das pessoas não faz esse movimento vezes suficientes. Elas estão projetadas “para fora”. Elas vivem, experienciam coisas sensorialmente, querem sobrecarregar seus sentidos. Isso é muito como estar vivo, sentir a vida. Mas escrever é como estar de fora de uma máquina vendo todas as engrenagens se movimentando e dando origem ao espetáculo. É uma forma diferente de se viver, ou é mais parecido com estar morto mesmo. Mas eu acho bom. 🙂

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