E isso foi tudo — Susan Sontag, Sor Juana Inés de la Cruz, Carson McCullers

E isso foi tudo — Susan Sontag, Sor Juana Inés de la Cruz, Carson McCullers

Em 1999, Susan Sontag ficou sabendo do lançamento iminente de uma biografia não autorizada que abordaria seu “amor aberto às mulheres”. Seria a segunda menção ao assunto proibido. A primeira, não muito repercutida, surgiu em uma matéria publicada no Independent no início da década. Assinado por Zoë Heller, o texto, que incluía uma entrevista, entregava que todos os relacionamentos de Sontag depois do fim do casamento com Philip Rieff tinham sido com mulheres. Heller ainda escreveu que Sontag “se [recusava] a ser classificada como lésbica” ou a confirmar o envolvimento de longa data com a fotógrafa Annie Leibovitz.

Joan Acocella, que redigiu o perfil da autora para a revista The New Yorker no início de 2000, deu a ela a chance de assumir o controle da situação: bastava tocar no assunto primeiro, antes que a biografia fosse publicada. Com o gravador ligado, Sontag travou. “Não sei que palavras usar. Não sei as palavras que devo usar”, admitiu. O que comoveu Acocella foi sobretudo o tom hesitante com que Sontag disse a frase depois utilizada no perfil, isto é, que teve namoradas. “Enquanto ela falava”, contou a jornalista, “eu chorava.” O colaborador da revista que transcreveu o áudio da conversa também chorou.

O episódio é relatado em Sontag: Vida e obra, a biografia escrita por Benjamin Moser e publicada no fim do ano passado. A questão mais ampla na qual ele se insere é tratada pelo autor a partir do que Sontag fez e a partir do que deixou de fazer — e, o que é um tantinho esquisito, a partir do que deveria ter feito, na opinião dele.

Em maior ou menor grau, e por mais que desejem evitá-lo, sempre é possível perceber ou deduzir disposições, opiniões e suposições dos biógrafos em relação aos biografados. A seleção e a forma de costurar episódios, a escolha de palavras, os recortes e enfoques revelam juízos mais ou menos sutis. Moser, no entanto, opta pela crítica escancarada a uma espécie de inação, ou seja, à incapacidade de Sontag de pronunciar “eu, na qualidade de lésbica…”. A frase não é minha. É do próprio Moser.

Ele tem bons motivos para esperar mais da autora, é verdade. Sontag se manteve calada mesmo durante o pânico causado pelo surgimento da aids na década de 1980, doença que na época era associada aos homossexuais. Sua saída do armário teria contribuído, na opinião de Moser, para atenuar alguns dos principais estigmas que dificultavam a vida das pessoas da comunidade LGBTQ+. Apesar de se posicionar politicamente em outras ocasiões — mesmo quando o posicionamento envolvia riscos sérios —, Sontag parecia “incapaz de pronunciar certas palavras”.

Nos anos que se seguiram à morte da autora, ocorrida em 2004, seus relacionamentos com mulheres se tornaram amplamente conhecidos do grande público. Seu modo por vezes trágico de encarar a própria homossexualidade veio à tona com a publicação dos dois volumes dos diários. A biografia de Moser resgata trechos desses escritos privados, além de reunir depoimentos que confirmam uma série de conflitos internos jamais resolvidos.

As evidências dos conflitos são ignoradas ou relativizadas para dar lugar a críticas que não raro soam desproporcionais. Em uma passagem, Moser diz que “a desonestidade quanto à sexualidade passou a ser vista, na melhor das hipóteses, como patética, e na pior, como patológica”. Embora pareçam genéricos, aplicáveis a qualquer pessoa que se recusasse a pronunciar certas palavras a partir de certa época, é difícil esquecer que os adjetivos apontam sobretudo para uma mulher nascida em 1933 e tolhida a vida inteira pela autocrítica mais cruel (como destaca Janet Malcolm em um excelente texto para a The New Yorker).

Segundo Moser, a maneira depreciativa como os homossexuais eram representados na mídia nas décadas de 1980 e 90 exigia um enfrentamento direto. “Para gays e lésbicas”, escreve, “era imperativo resistir a tais retratos mostrando seus verdadeiros rostos, definindo a si mesmos em vez de deixar que os inimigos os definissem.” Mas Sontag não tinha a menor ideia de como se definir, como atesta o depoimento de Joan Acocella.

A biografia sugere que Sontag escolheu a influência e o renome em detrimento da honestidade. De certa forma, a ideia de que sua figura pública era apenas uma máscara foi corroborada pela própria Sontag, inclusive nos diários. “Preciso da identidade como uma arma, para fazer frente à arma que a sociedade aponta contra mim”, escreveu ela, se referindo à homossexualidade. “Ser queer faz com que eu me sinta mais vulnerável. Aumenta meu desejo de me esconder, de ser invisível.”

A máscara que a ajudou a se tornar relevante — e que, até certo ponto, a manteve afastada do feminismo — é criticada pelo autor como impostura. Isso fica claro em um trecho em que ele aborda um controverso discurso de Sontag em Tel Aviv. “Em Israel, ela alegou que a importância de uma escritora consistia no que ela era. Mas a verdadeira importância de Sontag estava cada vez mais naquilo que ela representava”, escreve ele. “A metáfora de ‘Susan Sontag’ era uma grande criação original. Elevava‑se muito acima de sua vida individual, e sobreviveria a ela, e ajuda a explicar por que críticas judiciosas como Joan Acocella eram clementes com Susan — situando‑a numa curva moral.” É uma dureza incompreensível, que chega a deixar o leitor desconfortável.

Aberração

“Ver nela uma lésbica é uma aberração.” A frase contundente de Octavio Paz em Sor Juana Inés de la Cruz ou As armadilhas da fé emprega o adjetivo que é hoje o favorito dos fundamentalistas religiosos. Talvez por isso pareça tão chocante.

Publicada em 1982, a biografia da freira mexicana é quase oposta, em disposição, à de Benjamin Moser. Uma vez que a trajetória de Paz foi marcada por contribuições importantes para a alteração de paradigmas conservadores da crítica e recepção de poesia, as ressalvas e recusas que envolvem a abordagem da suposta homossexualidade de Sor Juana parecem ainda mais estranhas.

De modo geral, o trabalho biográfico de Paz fornece um excelente panorama da época, além uma análise detalhada e embasada da obra da autora. Como cartas e outros documentos importantes se perderam, ele procura “vislumbrar” quem foi Sor Juana.

A atitude, digamos, dúbia do autor não tem qualquer relação com o fato de a biografada ser freira. Paz critica aqueles que viram a trajetória de Sor Juana através das lentes da religião, interpretando cada escolha e etapa à luz de uma vocação inexistente. Sua decisão de vestir o hábito foi, sustenta ele, motivada por questões de ordem prática.

Juana Inés viveu na Nova Espanha entre 1651 e 1695. Ligada à corte desde a adolescência, manteve com a vice-rainha Leonor Carreto a chamada “amizade amorosa”, dedicando a ela as primeiras composições. Mas foi à outra vice-rainha, María Luisa Manrique de Lara y Gonzaga, que Sor Juana dedicou os poemas mais, digamos, sôfregos.

É preciso reconhecer que Paz, ao contrário dos outros biógrafos da freira, não tentou desviar do tema. Ele admite que os escritos de Sor Juana contêm “alguma coisa mais, diferente da gratidão e da amizade”, e extrapolam os recursos da poesia cortesã que procurava emular os trovadores. Há em Sor Juana “a intensidade que distingue a paixão autêntica da ênfase retórica”, o que a levou a ser correspondida “com os mesmos extremos, efusões e rompantes”.

Paz nota “uma ambiguidade” nas relações que Sor Juana mantinha com “algumas amigas”, o que, tal como se mostra nos poemas, não seria “sinônimo de lesbianismo, mas de sentimentos mais complexos”. A relação com María Luisa, ele reconhece, para logo em seguida recuar, “não exclui necessariamente as tendências sáficas entre as duas amigas, mas também não as inclui”. Sim, mas não. É evidente, e no entanto veja bem. Paz chega a dizer que a “inegável atração” que Sor Juana “sentiu por algumas mulheres” seria “a sublimação de uma paixão impossível por um homem”.

Não fosse “o estrito dualismo platônico” em voga na Nova Espanha da época, os sentimentos das duas mulheres teriam (lá está a palavra de novo) “se transformado em aberrações”. (Paz se refere à separação entre alma e corpo, disseminada sobretudo pelo neoplatonismo renascentista.) As duas mulheres de fato correram riscos. Graças à “temperatura e [à] ousadia” dos poemas, o primeiro volume das obras de Sor Juana, publicado em 1689, incluiu algumas advertências que “se [antecipariam] a qualquer interpretação desonesta”. Uma a uma, Paz valida as advertências com uma pressa que poderia ser confundida com alívio. Os poemas em que Sor Juana diz a María Luisa “eu ser tua quero” e “quão louca cheguei a me ver/ em teus felizes amores” são, portanto, mera representação do vínculo entre senhor e vassalo, característica do estilo cortesão.

Paz se apressa em atenuar ou relativizar os indícios das “tendências sáficas” tão logo os identifica. Longe de se impor como precaução necessária, o procedimento torna a argumentação contraditória e confusa, quando não ridícula. Para Paz, “salvo se [atribuíssemos a ela] uma libertinagem mental mais condizente a uma heroína de Diderot”, Sor Juana não teria escolhido “como refúgio um estabelecimento habitado exclusivamente por pessoas do sexo que, supostamente, a atraía”. Ele mesmo destaca que a precariedade da posição da jovem na sociedade da Nova Espanha — sendo ela uma filha ilegítima sem dote — tornava o convento a única saída disponível. A escolha da palavra “libertinagem” também diz muito.

Os quase quarenta anos transcorridos desde a escrita da biografia têm, claro, um peso considerável para o leitor de hoje. É a existência ou não do desejo por mulheres, mais do que uma espécie de identidade que não pode ser atribuída em retrospecto, que Paz tem em mente quando diz que é “uma aberração” ver Juana Inés como lésbica. E a verdade é que não temos acesso aos verdadeiros sentimentos da freira, como o próprio autor admite em mais de uma ocasião. Só sabemos que a conjetura, além da qual não podemos ir, é baseada em evidências, digamos, expressivas. De forma alguma é uma aberração.

 

E isso foi tudo

No início de fevereiro deste ano, a The Paris Review publicou um excerto do livro My Autobiography of Carson McCullers, de Jann Shaplan, recém-lançado nos Estados Unidos. Como o título adianta, trata-se de uma espécie de biografia da escritora norte-americana Carson McCullers (1917-1967).

Shaplan revela que pouco depois da publicação de seu romance de estreia, McCullers conheceu a suíça Annemarie Schwarzenbach (1908-1942), por quem se apaixonou. Segundo Shaplan, ela não dissimulava ou questionava seus sentimentos. “Ela amou Annemarie, e isso foi tudo.”

A omissão desta e de outras relações, diz Shaplan, não parece exatamente uma censura por parte dos biógrafos ou das pessoas que foram entrevistadas por eles. Os detalhes estão à vista, ainda que situados dentro de outra narrativa — a narrativa principal, aquela que podemos ou queremos ver, na qual as relações da autora com mulheres são diluídas quase que por completo. Shaplan diz que quanto mais lia, mais sentia que os sentimentos que ligaram McCullers a outras mulheres foram anulados ou ridicularizados.

Shaplan também diz que não é fácil rastrear relações entre mulheres, passadas ou presentes. “As relações de mulheres com outras mulheres com frequência são dissimuladas: por casamentos com homens muito bem documentados, por uma recusa cultural de enxergar o que está bem à vista ou até mesmo de acreditar que tais relações existam. Num mundo construído por homens e para homens e seus objetivos, uma mulher que ama mulheres não registra — e não é registrada.” Há várias razões para isso, de acordo com Shaplan. Uma lésbica pode se recusar a chamar a si mesma de lésbica, seja por motivos pessoais ou políticos. Uma mulher pode não saber que é lésbica, ou porque nunca teve chance de descobrir, ou porque não sabe que nome dar a certos vínculos. A própria Shaplan diz que de início não usou a palavra “lésbica” para se definir.

Shaplan diz que o mais perturbador na pesquisa foi ver a negação dos biógrafos, muitos dos quais insistiam em empurrar McCullers de volta para o armário. “Levei para o lado pessoal”, escreve. “Se Carson não era lésbica, se nenhuma dessas mulheres era lésbica, de acordo com a história, se de fato dificilmente há uma história lésbica, eu existo?”, questiona.

A própria Annemarie Schwarzenbach, também ela escritora, além de jornalista, fotógrafa e arqueóloga, foi calada pouco depois de morrer. Sua mãe, Renée, nascida na aristocracia alemã, manteve um caso com uma cantora de ópera durante anos. Renée não se opunha aos relacionamentos de Annemarie com mulheres, mas não entendia sua recusa em ocultá-los. Queimou todas cartas em que conseguiu pôr as mãos depois da morte da filha, contribuindo para o silêncio.

 

Palavras

“Quais as palavras que você ainda não tem?”, pergunta Audre Lorde em Irmã Outsider, publicado no Brasil há poucos meses. Para Lorde, “a transformação do silêncio em linguagem e ação é um ato de revelação individual” que “parece estar sempre carregado de perigo”. É o caso de Sontag, aparentemente: o reconhecimento do perigo, a paralisia, a impossibilidade — motivada também pela autodepreciação, pela culpa, pela confusão — de transformar o silêncio em linguagem.

(Certo, é verdade que Lorde discordaria de Sontag em inúmeros aspectos. Mas imagino que Lorde a teria entendido. A frase de Jann Shaplan, sobre “uma mulher lutando para nomear o próprio desejo”, se aplica muito bem a Susan Sontag.)

O contexto de Sontag é infinitamente mais próximo de nós que o de Sor Juana, e por isso mesmo mais compreensível. Sontag deixou diários e uma série de textos que ajudaram a pensar e a moldar o próprio tempo. Moser pôde entrevistar pessoas que a conheceram. No caso de Sor Juana, os escritos que restaram são (ao menos no aspecto que interessa a este texto) como que cifrados.

Ao afirmar, com razão, que a verdadeira Sor Juana se oculta na tradição da Nova Espanha do século XVII (a poesia barroca, afinal, é feita de “conceitos e arquétipos”, não de confissões), Paz destaca o sistema de proibições vigente em determinada época. Divididas entre expressas e implícitas, sendo estas últimas as mais poderosas, as proibições determinam o que se pode ou não fazer ou dizer. “No mundo moderno, o sistema de autorizações e proibições implícitas exerce sua influência sobre os autores por meio dos leitores”, escreve Paz.

Desse sistema nasceu a recusa de Sontag. Moser tem toda razão ao dizer que o comportamento da autora no final da vida atestou que ela nunca pôde “se livrar das atitudes que vigoravam quando era mais jovem”. Vejo aí uma abertura para compreender Susan, não para censurá-la.

A certa altura da vida de Sontag, segundo Moser, se dizer “abertamente gay não a colocaria mais em risco em termos legais ou sociais”. É uma afirmação duvidosa. Ele chega a comparar Susan Sontag a Adrienne Rich, que enfrentou sérias consequências ao sair do armário num momento em que a sociedade ainda era abertamente hostil aos homossexuais. Teriam as coisas mudado tanto assim nos anos da maturidade de Sontag? Como medir essa mudança? Como medir essa mudança aos olhos de uma mulher lésbica que, caso se voltasse para o passado, caso prestasse atenção no próprio presente, veria anos e anos e anos de narrativas censuradas, apagadas, descartadas, negadas, dissimuladas, diluídas? Como repreender Sontag por não ter enxergado o suposto novo estado de coisas, ou por não conseguir agir a partir dele?

Tanto a negação sem sentido de um possível desejo quanto o impulso de desmerecer uma autora que não conseguiu pronunciar certas palavras são questionáveis. Só a primeira atitude, é verdade, contribui para perpetuar o apagamento, embora à segunda também falte a dimensão mais completa de como opera o silêncio, de como ele cega, influencia, cala e amedronta. Mulheres lésbicas estão sujeitas a um duplo preconceito: o machismo acrescido da homofobia.

Correndo mais ou menos riscos, fosse a fogueira da Inquisição ou o ostracismo, sem guias ou bússolas, todas fizeram o que podiam fazer. Pela própria existência, por aquilo que foram e pensaram e escreveram, algumas deixaram os seus próprios guias e bússolas. Nem sempre esses guias e bússolas são como queríamos que fossem, e nem sempre contêm as palavras que gostaríamos que contivessem. São os guias e bússolas possíveis de cada uma.

6 Comments E isso foi tudo — Susan Sontag, Sor Juana Inés de la Cruz, Carson McCullers

  1. Mogli Quaglio

    Demais. Esse foi o melhor texto que já li aqui. Aliás, o melhor que já li na internet esse ano.

    ps: acho que encontrei três errinhos de revisão, Camila. Se quiser corrigir:

    “Paz critica aqueles que viram a trajetória de Sor Juana através das lentes da religião, INTERPRETANDO” (?)

    “A própria Shaplan diz que de início não usou a PALVRA”

    “Sontag deixou diários e uma série DE textos”

    : )

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  2. Luiz

    Texto maravilhoso, Camila! O último parágrafo em especial é perfeito. Fiquei morrendo de vontade de reler seu texto sobre a Annemarie Schwarzenbach, é uma pena que eu não consegui encontrá-lo.

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