Extrair sentidos do tumulto: uma entrevista com Daniel Galera

“Enchi de novo meu copo de uísque. Fui dar uma espiada no quarto de Miguel sem muito motivo, pois ele não tinha chorado nem poderia ter ido a lugar nenhum. Encostado na moldura da porta, aspirando o cheiro de criança que vinha da penumbra acolhedora do quarto, lembrei de como em mil novecentos e noventa e nove tinha surgido o que alguns chamavam de tensão pré-milênio. De repente a internet e até as páginas das revistas mais sérias estavam repletas de matérias sobre profecias de Nostradamus e sobre as inteligências artificiais que um dia ameaçariam a humanidade. Para uns, a fé no oculto. Para outros, a fé na ciência. Superstições escatológicas à parte, existia uma esperança que nunca mais houve. O mundo seguia uma bosta, mas flutuávamos numa relativa calmaria. Lembro de quando meu pai recebeu a última parcela do dinheiro confiscado das poupanças pelo governo Collor, corrigido pela inflação, algo que ele duvidava que um dia ocorreria. A moeda se mantinha estável e a bolha da internet criava um clima de futuro próspero na economia mundial. O fim do mundo na virada do milênio era uma grande festa. O maior inimigo, o famigerado ‘bug do milênio’, era algo que, quinze anos depois, parecia o argumento ruim de um blockbuster de ficção científica. Um erro de código, presente na maioria dos programas de computador, que registrava os anos com apenas dois dígitos em vez de quatro, um detalhe que supostamente causaria panes globais catastróficas no instante em que entrássemos no ano dois mil. Porra nenhuma aconteceu, claro. Nós seguimos bebendo e fodendo e adiando qualquer tipo de compromisso profissional, como se o futuro estivesse garantido, e nosso diário de bordo era um zine eletrônico lido por milhares de pessoas como nós, uns apocalípticos fajutos, apocalípticos de bungee-jump.
Logo depois cairiam as torres gêmeas. Um sentimento novo de estranheza aflorou quando pensei, no quarto do meu filho, nas semanas e meses que antecederam o ataque e suas consequências imediatas. Nós tivemos a oportunidade de encenar nosso apocalipse de mentirinha, eu, Aurora, Emiliano e Andrei. Para que o fim do mundo não nos atingisse, passamos a virada do milênio acampados em um sítio isolado que pertencia à família de Emiliano, um lugar de morros pedregosos, perto da região carbonífera, sem energia elétrica nem outros seres humanos num raio de muitos quilômetros. Brindamos ao apocalipse com cachaça mineira e assamos ovelha no fogo de chão. As festas de Ano-Novo ao redor do globo do ano dois mil ocorreram com uma normalidade brochante e o bug do milênio foi esquecido na ressaca do dia primeiro de janeiro. Quinze anos depois, o que começava a espalhar seus tentáculos pela sensibilidade de gente adulta e esclarecida como Aurora era outra coisa, uma angústia diferente da tensão pré-milênio.”
— Meia noite e vinte

Conversei com Daniel Galera sobre algumas das questões levantadas por Meia-noite e vinte, seu novo romance. Para entender melhor as perguntas e as respostas do autor, o ideal é ler a breve resenha do livro.

* * *

— Autores de diferentes idades e nacionalidades, e com variados graus de sucesso, têm produzido narrativas que se colocam em algum ponto entre o pessimismo e o fatalismo. Nos últimos meses, para ficar nos mais conhecidos, Ian McEwan escreveu Enclausurado; Jonathan Franzen escreveu Pureza; Michel Houellebecq escreveu Submissão. Coetzee, DeLillo, Roth, Bolaño, Pynchon, todos os grandes autores incorporaram, em suas tramas, algum grau de ceticismo, cansaço ou desilusão em relação ao futuro. Ou seja: essa exaustão, caso se possa chamar assim, talvez não esteja limitada a uma geração de autores ou a um país. Na forma que tem assumido, parece uma exaustão própria do século XXI. (a) O que a sua geração (Galera nasceu em 1979) tem de diferente, se tiver? No modo de enxergar as coisas, há algo que afaste os autores com menos de quarenta anos dos contemporâneos de Don DeLillo (que nasceu em 1936), por exemplo, ou a questão não é geracional? Ainda que a visão seja muito semelhante, há alguma obrigação que a sua geração tem e que as outras não têm? (b) Numa literatura que agora é globalizada, o pessimismo/fatalismo pode ser considerado um dos grandes temas? É possível fugir dele e ainda assim produzir uma narrativa que se poderia chamar de honesta?

Concordo com a tese de que há um fenômeno de exaustão típico do século XXI se manifestando na literatura e arte contemporâneas. Me parece que essa exaustão resulta em pessimismo e fatalismo em grau mais intenso justamente na minha geração. Esse é um dos temas de Meia-noite e vinte. Por mais que a geração de DeLillo pudesse ser esclarecida e crítica a respeito das tendências destrutivas da civilização, as gerações nascidas a partir dos anos 1970 lidaram com essas mesmas tendências em circunstâncias diferentes. No final dos anos 1990, havia uma relativa estabilidade. No Brasil, após a ditadura e a hiperinflação, tínhamos democracia e uma moeda estável. Para quem não era vítima de pobreza e discriminação, o futuro parecia reservar um espaço garantido para projetos pessoais, afetivos e profissionais. Havia problemas, mas também o senso de progresso possível. O fim do mundo, na virada do milênio, era mais uma narrativa vibrante associada ao calendário do que uma verdadeira sensação de aniquilamento iminente. E então veio o estouro da bolha da Nasdaq, o 11 de setembro e todo o resto. De lá pra cá, a precariedade só aumentou. Crises globais — financeiras, políticas, ecológicas — se agravaram ao mesmo tempo em que a internet e as novas tecnologias incrementaram a velocidade e o volume de informação num ritmo atordoante. De um lado, há quebras sucessivas e crescentes daquelas expectativas gestadas no fim do milênio. De outro, a sensação de um excesso de conhecimento, sobretudo científico, a respeito das tendências destrutivas da civilização, mas sem uma capacidade de ação correspondente. Como combater terrorismo, aquecimento global? Nada parece suficiente. E com isso o imaginário se torna receptivo ao apocalipse. Não espanta que os esforços de escritores e artistas em traduzir o momento em que vivem transpirem pessimismo e fatalismo em suas mais variadas formas. Não se trata mais de uma profecia de Nostradamus, de uma bravata mística em tempos seculares, ou de alterar algumas linhas de código para evitar um bug de software, mas sim da sensação de estar dentro de um avião superlotado, acelerando para tentar decolar numa pista curta demais. Acho importante lembrar que, para tratar desse pessimismo ou fatalismo, a literatura não precisa ser, ela mesma, pessimista ou fatalista. A literatura — quando digo literatura, quase sempre quero dizer a arte em todas suas modalidades — pode nos ajudar a extrair sentidos desse tumulto e apontar novas formas de convivência, de ação política, de beleza e de valor. Meia-noite e vinte não apresenta saídas ao pessimismo de maneira expositiva, mas penso que há sementes de esperança plantadas nesses personagens. Emiliano vê esperança na nossa própria capacidade de afeto. Aurora encontra breve alívio na desaceleração da vida e no encontro fortuito e olho-no-olho com outras espécies. Acho que mesmo o fatalismo eufórico de Antero, um personagem que abraça com gosto o vórtice de contradições do tempo em que vive, não deixa de ter sua beleza.

 

— Vamos voltar à questão da honestidade. A Antero, o personagem de Meia-noite e vinte que atua como publicitário, é atribuída uma reflexão curiosa: “Todo palerma que já havia escrito um romance ou dirigido um filme gostava de dizer que a arte não podia prescindir de honestidade, que a mentira e a simulação apenas serviam a uma sinceridade anterior. A eles eu diria que a desonestidade em forma pura era a estética do futuro”. (a) A publicidade vai afetar ou tem afetado a linguagem artística? De que maneira? (b) A literatura comercial prescinde dessa honestidade em nome do conforto do leitor? As duas coisas poderiam se articular? Me refiro a uma literatura fortemente vendável, que segue a lógica do consumo rápido e fácil, e um leitor satisfeito e reconfortado.

David Foster Wallace fez uma análise preciosa da influência da publicidade na literatura em seu ensaio E Unibus Pluram – Television and U.S. Fiction. Nos anos 1960, a ficção americana começa a criticar a alienação trazida pela TV. Dos anos 1970 em diante, é a TV que assume sua vocação para a ironia e passa a se autocriticar com distanciamento irônico, bajulando o espectador, que se sente inteligente na medida em que julga sacar as piadas internas fornecidas pelo próprio conteúdo televisivo, sem se sentir parte da piada. Um dos argumentos de Wallace é que a literatura jamais vai ganhar da TV nesse jogo. Ele clama os ficcionistas a abandonarem a ironia destrutiva em nome de uma sinceridade construtiva, que não tenha medo de soar emotiva ou conservadora. Esse texto foi escrito em 1990 e se atém ao meio literário dos Estados Unidos, mas ele foi certeiro no diagnóstico de como a publicidade fagocita as críticas ao modo de vida capitalista e as devolve na forma de mais retórica publicitária eficiente. A literatura se vê na ingrata posição de reproduzir mimeticamente a publicidade que nos engolfa, o que é válido mas insuficiente como crítica, ou de partir para o ataque contra a linguagem e os valores da publicidade, apenas para ver esse esforço ser absorvido e reaproveitado nas campanhas publicitárias do mês seguinte. Essa batalha é tão ingrata que ela se tornou um tanto ausente da literatura nos últimos dez ou vinte anos. No front da mimese, autores evitam falar de publicidade ou citar marcas por medo de ganharem o rótulo pejorativo de literatura pop ou, pior, de serem processados pelas marcas citadas. No front do ataque crítico, cada míssil da literatura que acerte o alvo será oferecido como conteúdo comercial em um piscar de olhos e consumido com sofreguidão, inclusive pelos próprios escritores contestadores, porque enfim, quem não curte uma tevezinha, um consumo irônico et cetera. De todo modo, a batalha vale a pena. O deboche à publicidade, por exemplo, não deixa de ser um pequeno respiro eventual de resistência, assim como toda literatura que desnorteia, perturba, desdenha de expectativas médias, expõe o que é invisível. E a mera honestidade de intenções, ideias e sentimentos na ficção é um contraponto às retóricas do mercado. Dito isso, uma coisa que ando pensando é que talvez o conteúdo predominante na internet, e em específico o recurso aos memes (talvez o mais perfeito artefato irônico) e assemelhados para se comunicar a respeito de qualquer coisa, de expressões de afeto a ideias políticas, pode ter rompido de vez o limite entre a publicidade e o conteúdo gerado pelo consumidor. Desse ponto de vista, seria tudo um grande anúncio mesmo, e nesse caso Antero teria razão em considerar a desonestidade de DNA publicitário uma estratégia vanguardista para a arte. Pelo menos por alguns meses. E não deixando sem resposta a segunda parte da tua pergunta, eu não faria essa equivalência entre literatura vendável e desonestidade. A literatura pode ser honesta a respeito de temas e ideias banais, e pode ser honesta valendo-se de formas e signos facilmente digeríveis. Alguns leitores procuram apenas isso. Há honestidade e desonestidade em best-sellers e nos autores exigentes e impopulares. Outra forma de dizer isso, do ponto de vista de quem esteja interessado em ler e escrever literatura provocativa e questionadora, é que a honestidade, por ela mesma, não garante nada.

 

— Os personagens de Meia-noite e vinte experimentaram a “tensão pré-milênio”. Ao mesmo tempo em que inspirava angústia, o momento também estava carregado esperança. “O mundo seguia uma bosta, mas flutuávamos numa relativa calmaria.” Essa esperança se atenuou ou foi completamente suprimida? O que mudou?

Essa expressão, “tensão pré-milênio”, é o título de um álbum do Tricky, lançado em 1996, que para mim não apenas forneceu o conceito, mas também uma das melhores trilhas sonoras daquele período. De todo modo, eu faria a seguinte distinção pra responder a essa pergunta. Às vésperas do novo milênio, a questão da esperança era secundária, justamente porque havia uma certa confiança. Na época em que meu livro se passa, em 2014, os protagonistas perderam ou começam a perder aquela confiança com que entraram na vida adulta. É aí que a questão da esperança se torna primária. Haverá futuro? Para Aurora, a experiência vivida neste momento da história não remete a um ciclo, uma parábola, uma queda ou a qualquer outra dessas metáforas tradicionais para a vida, e sim à estase, a um estado de impotência e estagnação. Pode até se tratar de uma ilusão que não resistiria a análise racional (alguém poderia lembrar que a miséria nunca foi tão baixa, que a expectativa de vida nunca foi tão alta et cetera), mas, fenomenologicamente, a experiência vivida é essa: estase. Qual a esperança preferível ou possível nesse caso? Que tudo volte a ser como antes? Que as coisas ao menos não piorem? Ou podemos esperar um futuro melhor, trabalhar para construi-lo? O sentimento que assola os personagens passa muito por essa questão. Que forma a esperança pode assumir? Em um livro que li recentemente, a autora afirma que a mera pronúncia da palavra “progresso” soa anacrônica hoje. As pessoas ainda a usam, mas secretamente sentem que é antiquada e já não se aplica ao mundo que observam e vivenciam. Não sei se é o caso de todo mundo, mas concordei com ela. É óbvio que o tempo não para, a vida e as vidas não param, mas o que significa pensar a esperança fora da noção de progresso? É uma pergunta esplêndida.

 

— Em Gramáticas da criação, George Steiner ressalta a dialética da esperança e do medo. Uma, diz ele, não existe sem o outro. Para Steiner, trata-se de “duas ficções supremas deflagradas pela sintaxe”. Articular a esperança, segundo Steiner, é um importante ato de fala. “Em qualquer nível que não o do trivial ou o do momentâneo, a esperança sempre representa uma inferência transcendental. Uma inferência, aliás, avalizada por presunções teológico-metafísicas”, observa. (a) A literatura é, em todos os sentidos, um ato de resistência e/ou de esperança? (b) As narrativas que de alguma forma articulam o pessimismo versus a esperança abrem, abriram ou abrirão uma nova linguagem? (c) Toda articulação de esperança lida com “presunções teológico-metafísicas”?

Essa questão é bem complexa e não sei se consigo dar uma resposta coerente. Mas eis o pensamento que me ocorreu: se a esperança é sempre uma inferência transcendental, o que será dela quando o horizonte de transcendência for se apagando? Esse é um dilema do ocidental secular, agnóstico ou ateu, leitor de ciência e usuário de computadores desde criança, e em linhas gerais o perfil da maioria dos meus personagens. Um dos personagens do meu livro, Antero, fala disso: a era dos algoritmos impossibilita a transcendência. Toda experiência é reduzida a números, imagens e procedimentos. Transe religioso? Eis uma imagem de ressonância magnética do cérebro mostrando do que se trata. Bondade, altruísmo? Dirija-se à estante de psicologia evolucionista. Superação atlética? Temos aplicativos de treinamento, suplementos sintéticos, o videogame infinito das dietas, sirva-se. Mas este é o mesmo mundo em que, agora mesmo, centenas de pessoas planejam se explodir no meio de multidões para ir ao paraíso e apressar o juizo final, enquanto outras centenas investem bilhões de dólares em pesquisa científica acreditando na colonização de outros planetas e visando a imortalidade por meio de upload de mentes para máquinas. Se toda articulação de esperança lida com presunções teológico-metafísicas, acho que precisamos urgentemente dar uma chacoalhada em nossas presunções teológico-metafísicas. A esperança precisa de desprendimento e criatividade. Aí, talvez, entre o sentido de resistência ou de esperança da literatura: o cultivo da imaginação é essencial para dar essa chacoalhada.

 

— Em uma das entrevistas sobre o livro, você foi questionado sobre o niilismo em Meia-noite e vinte. Penso que a narrativa está muito longe de poder ser considerada niilista. Basta voltar à Gramáticas da criação: em uma conferência pronunciada na década de 1990, Steiner ressalta a ideia do pessimismo como pertencente ao pensamento ocidental desde a segunda metade do século XX. Segundo Steiner, “na obra de arte mais triunfal” sempre há uma recusa em permitir que esse pessimismo se sobreponha aos outros elementos. Às vezes no último minuto — como em Pureza, de Franzen, em uma manobra que não funcionou —, o pessimismo é recusado e substituído por alguma coisa. “É desse embate que o discurso filosófico e a produção da arte derivam seu poder criativo e sua tensão não resolvida, da qual a beleza e a lógica representam os principais modos formais”, escreve Steiner. Seu romance equilibra bem essa tensão. Como você moldou o contraponto ao pessimismo em Meia-noite e vinte? Houve essa preocupação em desviar do niilismo? Você concorda com Steiner — em busca de resultados mais satisfatórios, o que nada tem a ver com a facilidade de assimilação, a literatura deve se preocupar em dosar esse ingrediente em particular?

De modo geral, concordo com Steiner. A literatura costuma alcançar efeito mais grandioso quando inspira o leitor a se encantar com o universo e a condição humana. Mas há maneiras e maneiras de alcançar isso. Em um romance terrível como Viagem ao fim da noite de Céline, foi a cena da terna despedida de Molly, abandonada por Bardamu em Nova York, que me marcou para sempre. Em O estrangeiro, de Camus, o detalhe que volta sempre que penso no livro é Mersault olhando as cores cambiantes do céu pela janela da cela, sua disposição a agarrar-se a algo tão prosaico para escapar à engrenagem do moralismo, do estado, da justiça, da religião. Há uma variedade de niilismo existencial nesse livro que é revigorante, incita à revolta e à liberdade. Às vezes chego perto da euforia quando leio Cioran, um niilista pleno e irredutível. Por que isso acontece? Nunca decifrei, acho interessantíssimo. Quando Cioran diz que a morte é fichinha perto do nascimento, este sim a verdadeira tragédia, por que tenho vontade de correr 10k, tomar um milk shake, escrever, abraçar alguém? Creio que as melhores narrativas sabem trabalhar bem esse pêndulo entre niilismo e significado. Se a vida não significa nada, ao me apoderar desse conhecimento me liberto, até topar com os limites e obstáculos que vão exigir um novo esforço, novos significados. Querer simplificar isso é o erro. E assim arrisco dizer que o niilismo perigoso é o niilismo simplista. O niilismo que, por falta de imaginação ou requinte, resulta em cinismo e conformismo. Em Meia-noite e vinte, ao optar por descrever a crise dos personagens sem propor soluções claras, eu corria o risco de um niilismo simplista, mas me esforcei pra evitar isso. Tem um aspecto da narrativa que poucos percebem: com uma única exceção, significativa, os narradores usam o verbo sempre no pretérito. Mesmo o presente gnômico (agradeço ao Caetano Galindo por me ensinar o nome desse tempo verbal), aquele das coisas que sempre são, tipo “um triângulo tem três lados”, se tranforma em pretérito. No meu romance, um triângulo tinha três lados. Eu queria infiltrar no leitor a sensação de que essas vozes narram de um futuro distante em que tudo mudou, mas elas ainda existem, o mundo ainda existe após a catástrofe. Os personagens estão falando do outro lado do apocalipse, de uma época irreconhecível, mas que lhes garante a fala. Nossa época, no livro, é na verdade uma lembrança distante. Existe uma vibração de fundo no romance, algo não narrado, que sugere a superação dos impasses.

 

— Você diria que Barba ensopada de sangue é mais pessimista do que Meia-noite e vinte?

Talvez o leitor do livro vá estranhar isso, mas eu não acho o Barba ensopada de sangue nem um pouco pessimista. A discussão de fundo ali não tem muito a ver com a viabilidade da condição humana ou do planeta. É sobre o substrato prosaico dos mitos e sobre determinismo. Há uma sugestão de que nosso espaço de manobra, ou livre-arbítrio, se preferirmos chamar assim, é pequeno. Mas eu queria mostrar como, mesmo assim, a vida floresce e vale a pena. O protagonista está em um momento particularmente doloroso de sua vida, mas eu vejo sua história como a de um homem finalmente encontrando seu lugar no mundo, criando os vínculos afetivos de que precisava, fazendo as pazes com sua vida interior. Para mim, é um livro muito mais animador que Meia-noite e vinte.

 

— A relação dos personagens de Meia-noite e vinte com a tecnologia e com os avanços da ciência é bastante dúbia. Há a esperança: Aurora tenta avançar alguns passos na criação de uma técnica inovadora que poderia ajudar a alimentar um planeta superpovoado. A avaliação que Aurora faz do do mito de Sísifo, porém, vai em sentido oposto. Saber demais, pensa ela, poderia ser prejudicial. (a) Você compartilha da visão de Aurora? Nosso conhecimento sobre o nosso próprio cérebro, por exemplo, nos rouba alguns prazeres ou ilusões importantes? (d) As novas respostas que surgem diariamente podem aumentar a necessidade que temos da arte? Se quisermos seguir empurrando a pedra, vamos precisar ainda mais da literatura? E isso envolveria (de volta a Steiner) “presunções teológico-metafísicas”? (c) A despeito de nossa necessidade, a literatura sobreviveria diante dos mistérios que pouco a pouco são esclarecidos?

A ciência é aliada da literatura e da imaginação humana como um todo porque cria novos mistérios. Entendida da forma correta, ela é um convite à ficção. É preciso ser criativo para inventar mil maneiras de falsear hipóteses, duvidar saudavelmente de hipóteses já corroboradas, formular novas perguntas. Mesmo no caso da neurociência, pra aproveitar o gancho da tua pergunta, os avanços incríveis das últimas décadas pouco esclareceram a respeito do funcionamento da consciência humana. Ainda não fazemos a menor ideia de como representamos uma cor nos neurônios, e muito menos de como surge e opera o fenômeno da introspecção. A metáfora do cérebro como um computador é insuficiente e preguiçosa. Acho provável que a neurociência sozinha jamais quebre o código da consciência. O problema é tão misterioso que hipóteses como panpsiquismo (a consciência é um elemento constituinte do universo e todo objeto a possui em algum grau) e argumentos teleológicos seguem sendo propostos hoje (Thomas Nagel recentemente escreveu um livro sugerindo que a vida consciente é o objetivo do universo). Não sei até que ponto acredito nessas coisas, mas são perguntas formidáveis e ainda necessárias. Vamos precisar de muita arte e literatura ainda, por muito e muito tempo, não há dúvida. O que gera a ansiedade de Aurora e dos demais personagens do meu livro não é a profanação dos mistérios, mas a sensação de confusão e impotência diante do bombardeio incessante de informação. A partir de um certo ponto, esse bombardeio pode nos distanciar da experiência vivida. O conhecimento é sempre bom, mas nossa relação com o conhecimento, mediada por tecnologias e ideologias, pode se tornar opressora em determinados contextos.

 

— O feto que narra Enclausurado, novo livro de Ian McEwan, oscila entre dois extremos: o otimismo e o fatalismo. No final do romance, ele observa que primeiro vem “a tristeza, depois a justiça, enfim o significado. O resto é caos”. Essa ordem, por algum motivo, parece se aproximar do éthos de Meia-noite e vinte — com exceção da justiça, pela qual os amigos de Duque esperam em vão. Se o papel da literatura diante do significado (e até da tristeza) está bem claro, qual seria o papel dela diante do caos? Ela deveria tentar organizá-lo ou apenas reconhecê-lo?

Sou alérgico a declarações de que a literatura deve isso ou aquilo. No meu caso, a via de reconhecer o caos é mais atraente. Em outras palavras, não tenho muito talento para organizá-lo. Finais abertos, perguntas sem resposta, mas com personagens e tramas delineadas, algum realismo psicológico (nem que seja para desmontá-lo no próprio livro). Mas quando falo em reconhecer o caos, não se trata de reproduzi-lo no conteúdo ou na (ausência de) forma. É mais no sentido de acolher no romance o ruído, a ambiguidade, a contradição, a incompletude da experiência. Reservar-se o luxo de não concluir, afirmar, negar nem esgotar nada que é posto em movimento na narrativa. Gosto de uma frase do Saer em O grande: o romance é o movimento contínuo decomposto. Selecionar uma seção de caos, desmontá-la, dispor as peças formando algum padrão, mas nada muito organizadinho, sem formar um desenho.

 

— Depois da morte de Duque, o escritor, há uma espécie de polêmica envolvendo a publicação, num jornal, de um texto do personagem que permanecia circunscrito à internet. Francine, a namorada de Duque, é incumbida de apagar os poucos rastros que ele havia deixado em redes sociais e blogs. Qual a importância desse tipo material de um autor para, por exemplo, a crítica? Ele teria a mesma relevância de um diário ou de um punhado de cartas?

Essa é uma boa pergunta que começará a ser melhor respondida pela crítica daqui para a frente. Em tese, considero que os rastros digitais de um autor, desde os textos propriamente ditos, deixados em um blog, por exemplo, até as pegadas em perfis, redes sociais, lojas online et cetera, são relevantes para a crítica. Potencialmente relevantes, pois é mais provável que 99% do material seja insignificante. Para a crítica genética é particularmente relevante. Todavia, resta a questão a respeito da autoridade do autor, vivo ou morto, em relação a seus chamados “papéis”, agora estendidos para essas pegadas digitais. Embora eu considere um pouco incoerente que um autor do nosso tempo, como eu ou meu personagem Andrei, tenha neuroses excessivas com relação a materiais deixados na internet, acho que a vontade dos autores, quando expressa, ainda deve ser respeitada. Para quem assim o deseja, deveria ser mais fácil apagar perfis e conteúdos, em vida ou após a morte. A privacidade, como o progresso, é uma noção anacrônica. Minha geração é provavelmente a última que vai se importar a sério com isso. Mas é uma questão de gentileza, no mínimo, dar esse controle às pessoas, e respeitar as decisões delas sobre o que querem ou não publicar, o que querem que permaneça ou não exposto na rede. No meu livro, sabemos que Andrei deixou instruções à namorada para que apagasse tudo, mas essa paranoia dele é logo colocada em questão. Sabemos que ele tinha avatares e perfis secretos, que navegava nas redes usando outras identidades. Aurora opina que é meio ridículo chafurdar a vida toda na internet para, no fim, ficar obcecado em apagar rastros. É mais ou menos o que penso também. Emiliano acaba desvendando um segredo afetivo a respeito de Andrei quando se dedica a vasculhar os rastros do amigo na internet, e isso abre uma nova trilha em sua própria vida. O que ele faz é meio indigesto, cheira mal. Mas é a vida, às vezes cheira mal ao se desdobrar, não é a internet que irá sanitizá-la.

 

— Como você lida, hoje, com o acervo do antigo Cardosonline?

Tenho vergonha da maior parte do que escrevi, preferia que ninguém lesse. Mas assumo tudo e não moverei um dedo pra apagar nada. Aqueles anos mudaram minha vida, me colocaram em um rumo que sigo até hoje. Se eu apagasse uma única linha daquilo, seja de texto, da minha história pessoal ou da história coletiva, me sentiria um verme.

 

— O fato de ter começado a publicar online faz alguma diferença — além da óbvia influência na temática, no caso de Meia-noite e vinte — na sua escrita?

Não creio que tenha feita tanta diferença em termos de estilo ou temas. Deve ter influenciado minha postura diante do sistema literário. Assim como outros escritores que despontaram naquela época de fundação da internet como meio de publicação, passei anos me autopublicando, até formar um público leitor pequeno, mas entusiasta. Tento preservar a sensação de que ainda hoje, se desse vontade ou fosse necessário, eu poderia me autopublicar novamente. Além disso, a internet daquela época se assemelhava mais a uma conversa no pátio escuro de uma festa estranha, não com o shopping center lotado e aceso de hoje. A web dos primórdios proporcionava uma sensação peculiar que guardo até hoje. Cada site e cada internauta era um pequeno mistério a ser investigado. Acho que aquela sensação foi bem importante na minha formação como um todo, escritor, leitor, ser humano.

 

— É impossível ignorar a importância do Cardosonline para quem produz conteúdo na internet. De certa forma, o fanzine abriu caminho até para este site. Como você avalia a produção de conteúdo hoje? Como as novas gerações têm dado prosseguimento àquilo que vocês possibilitaram?

Para entender o Cardosonline e tantos outras publicações digitais do fim dos anos 1990, é crucial lembrar que surgiram antes dos blogs e redes sociais. Os internautas, em sua maioria jovens meio nerds que aprendiam a programar HTML e criar GIFs baixando tutoriais da própria rede, precisaram criar seus meios de publicação. Foi a época dos sites pessoais, cada um diferente do outro, um ecossistema heterogêneo de páginas cheias de texto e com quase nada de multimídia, dentro qual nasceram também os zines literários. Essa tendência de expressão individual gerou, entre outras coisas, uma nova modalidade de escrita de si, que nós do Cardosonline chamávamos de egotrip. Era uma autoficção de alta voltagem hormonal, que talvez não faça sentido hoje, mas que na época era novidade e acenava para novas formas literárias. Hipermídia, pesquisa online, transmissão digital, tudo isso eletrizava a cena. Quinze anos depois, todo aquele impulso autoficcional não se cristalizou exatamente numa nova literatura, e sim nas redes sociais. O Facebook é, em muitos sentidos, a encarnação corporativa, publicitária e paquidérmica daquelas mesmas tendências narrativas e narcisistas, só que exploradas comercialmente. A literatura seguiu seu caminho mais ou menos incólume, encontrando na internet um novo espaço de comércio, debate e disseminação. Para entender, então, o legado dos primeiros anos da web em termos de possibilidades narrativas, é preciso abrir os olhos hoje para o Snapchat, o Twine, o Curious Cat, o Tumblr, e mesmo para os cantinhos menos óbvios do Twitter e Facebook. É um pandemônio, mas as pessoas estão se comunicando e criando personagens e histórias sem parar aí no meio. Outras linguagens, outras relações com privacidade e corpo, padrões estéticos nunca vistos, e às vezes impossíveis sem a tecnologia do momento. Talvez ainda vejamos uma confluência maior do que chamamos de literatura com o que chamamos de conteúdo das redes sociais. Ou pode ser que seus objetivos sejam diferentes demais e um negue o outro indefinidamete. Não sei. Mas eu torço, e gostaria de contribuir, para preservar e ampliar a presença na internet daquela liberdade desbravadora da jovem web. Os algoritmos das redes sociais são cada vez mais eficientes em nos fornecer o que já gostamos e conhecemos, no sentido contrário do que se espera da boa literatura. A dissidência está em certos perfis e sites que recusam aderir às fórmulas prontas de publicar e se expressar. No Tumblr, em alguns blogs e mesmo no Instagram, às vezes me surpreendo com a originalidade e a estranheza de certos textos, timelines de fotos, historinhas em vídeo, para não falar dos recônditos mais profundos dos fóruns, chats em vídeo, podcasts obscuros. Isso sem nem entrar nos games.

24 Comments Extrair sentidos do tumulto: uma entrevista com Daniel Galera

  1. Livia

    Camila, preciso te dizer que depois de ler a resenha e a entrevista com o Daniel Galera passei a gostar ainda mais do livro. A entrevista está incrível, foge de qualquer obviedade. Seu trabalho como crítica chega a me emocionar, pois vc expande a obra para várias direções, e na minha visão está aí a nobreza do pensamento crítico. E vc é da minha geração, então fico meio que orgulhosa, animada, sentindo algo muito bom! Enfim, tô babando ovo aqui, chega, kkk. E sobre a questão do pessimismo/fatalismo/esperança, minha experiência de leitura do livro oscila mais para a esperança, acho que principalmente pelo modo como o Daniel Galera termina a narrativa. Quando Aurora vê inesperadamente o veado branco, para mim há a sugestão de um porvir vivo, de um futuro possível. E como o próprio Galera diz aqui, ele quer fugir do niilismo simplista. Fiquei pensando aqui no ‘niilismo ativo’, no ‘niilismo generativo’. Na minha visão ele vai por aí com o Meia noite e vinte. Um bjo e parabéns por mais uma bola dentro

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    1. Camila von Holdefer

      Valeu, Livia, fiquei até emocionada com o comentário. 🙂
      O final com o veado branco é lindo – acho que é o final mais bonito de um livro do Galera. É um lampejinho de esperança que logo some, e não se sabe bem se a Aurora tem intenção de ir atrás dele ou não. Mas concordo com a tua interpretação: é um futuro possível pelo qual não se pode esperar passivamente. Gosto demais dessa ambiguidade.
      Beijo, e gracias pela leitura!

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  2. G

    E o insuficiente conhecimento mostra nos a impotencia de dizermos o obvio criando o engodo do caos, a desespença. A linguagem que cria labirintos para se fazer compreensível.

    Sobre beds (cheio de esperança como mdc): O homem que se encontra e transcende.

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  3. Dario Šarić

    Pretensão na sua forma mais brutal.

    Entrevistadora e entrevistado, falando prolixamente em uma enorme batalha de egos.

    Adeus.

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    1. Camila von Holdefer

      Achei importante fornecer também uma resposta séria, ainda que o “Dario” (que, ao não usar o próprio nome, manifesta uma postura que estamos habituados a reconhecer nas caixas de comentários mais raivosas, mas que parece destoante, por motivos óbvios, em sites que procuram discutir livros e leituras) não mereça. Quando decidi começar a entrevistar autores, minha ideia era fugir ao máximo da entrevista banal, aquela que inclui perguntas do tipo “De onde você tira sua inspiração?” e “Como você decidiu virar escritor?”. Isso era tudo o que eu não queria. Não queria entregar mais do mesmo. Imagino que os próprios autores estejam um tanto cansados de responder as mesmas coisas sobre os mesmos assuntos. Eu também queria aproveitar o espaço de certa forma ilimitado de um site (de um site que eu mesma edito) para dar ao autor a chance de se aprofundar em uma ou outra questão, se fosse o caso. Nada de limitar o espaço, e nada, portanto, de repetir as mesmas perguntas que a maior parte dos escritores já precisou responder alguma vez. A ideia era, e continua sendo, uma vez que o formato não vai mudar, a de entregar ao leitor do site (gratuitamente) um conteúdo pensado e elaborado com menos pressa e mais cuidado. Nesse sentido, é ótimo topar com autores como o Bernardo Carvalho e o Daniel Galera, que não apenas se propõem a responder perguntas não tão usuais — que tentam aprofundar uma discussão sobre o livro em questão ou sobre os assuntos que se sobressaem ali — como fazem isso com evidente generosidade. O comentário do “Dario” é característico de um país em que ainda não retomamos ou recriamos, ao menos no nicho da literatura, a tradição de longas críticas e longas entrevistas. Aos olhos de pessoas como o “Dario”, todo o gesto parece sem sentido, exagerado, exibicionista. Para ir além do fácil, do seguro, do básico, minha alternativa é adotar uma linha mais autoral, que, de resto, sempre foi a proposta do site. Por fim, o que talvez seja o mais importante, tento honrar e respeitar a inteligência dos autores. O que “Dario” chama de “batalha de egos” é um esforço conjunto, que me emociona e me deixa feliz, para levar ao leitor um conteúdo ligeiramente diverso. Isso envolve uma generosidade recíproca, uma generosidade de mão dupla: quero investigar mais a fundo um trabalho e um pensamento que me agradam e me interessam, e abro espaço para isso; o autor, em contrapartida, compra a ideia e dá o seu melhor para que ela se concretize. Entrevistar é mais ou menos como dar um bom passe para que o outro faça o gol; é jogo, não batalha. Se não há beleza nisso, não sei onde há. Lamento muito que “Dario” veja a entrevista como pretensão; ao mesmo tempo, acho sintomático o uso dos adjetivos “enorme” e “brutal”, que traem não uma competição doentia entre entrevistadora e entrevistado, mas o esforço imenso e conjunto que resultou nessa entrevista. Nesse sentido, não há lugar para o fel de um “Dario” aqui. Há lugar, isso sim, para essa troca. Uma troca enriquecedora que envolve leitores e escritores. Meu muito obrigada ao Daniel Galera e ao Bernardo Carvalho e aos autores que virão.

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      1. Felipe

        Camila, seu site é muito interessante. Resolvi fazer um elogio em resposta ao seu comentário porque li sua resposta ao hater acima e percebi que vc consegue atingir todos os objetivos que pensa para esse espaço.

        Por muitos anos tive um blog, que tá meio parado, e por muito tempo estive no facebook. Usa a rede social para divulgar meus escritos no blog, mas aos poucos fui escrevendo em sites e minha vida de escrita se expandiu. O facebook passou a ser uma plataforma de expressão, já que muita coisa eu só conseguia dividir com pessoas dali, que eu adicionava por afinidade intelectual — ou que me adicionavam.

        Enfim, recebi muitas vezes o título de arrogante e pretensioso, coisas desse tipo.

        Vejo isso como algo natural — mas não louvável moralmente — em relação a quem trabalha de alguma forma com o intelecto. A vida do brasileiro típico — talvez de um latino americano típico, não sei bem — gira em torna de sua própria vida autocentrada, mas que de nenhuma forma tem a ver com uma vida intelectualizada, mas sim com afazeres externos e superficiais às vezes. Então eles não tem os olhos adequados para enxergar uma produção intelectual que saia do óbvio. Se você não for sofrivelmente humilde, a ponto de não falar nada com nada, nada novo, simplesmente jogam o autor num limbo de suposta arrogância e pretensa superioridade.

        É meio triste. Fico revoltado. rs

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        1. Camila von Holdefer

          Obrigada pela delicadeza, Felipe. 🙂
          Em notas relacionadas, penso muito na questão dos autores considerados pretensiosos. É fácil ver resenhas acusando David Foster Wallace, para citar um em quem o rótulo já parece ter grudado, de ser um escritor exibicionista. Não raro a ofensa parte de quem 1) não conhece a obra; 2) não terminou de ler qualquer um dos livros; 3) não entendeu qualquer um dos livros. Então penso que existe um abismo entre quem acusa e quem recebe a acusação. E também penso que, embora os adjetivos sejam pertinentes e às vezes acertem o alvo, nem sempre são justos. Certamente não são no caso de DFW.
          Bem, vou visitar o Ano Zero.
          Grande abraço!

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          1. Felipe

            Sou apenas uma das pessoas que escrevem no Ano Zero. rs Com sorte vai achar algo meu lá.

            Mas é isso mesmo que vc falou, sem tirar nem pôr.

            Mas eu diria ainda outra coisa. Eu nunca vi ninguém dizendo que, sei lá, Michelangelo eram Da Vinci eram pintores pretensiosos. Insira aí qualquer pintor sensacional de sua escolha. É um tanto misterioso pra mim por que alguém que se dedica às letras recebe esse tipo de rótulo se cumpre seu papel bem.

            p.s.: essa plataforma de comentários não avisa por e-mail quando há respostas 🙁

  4. Bruno

    Acho que o Dário não entendeu direito. Desconfio na verdade de um coleguismo, que não vejo com pesar. Não deixou de ser interessante e de grande valor informativo. Acompanho o Blog, muito bem organizado e de enorme qualidade, e também a carreira do Daniel Galera, que é um escritor excepcional, que acho que se esforça para se manter um pouco fora das patotinhas jabuticabeiras.
    Até mais!

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  5. Felipe

    Que entrevista sensacional! Li a resenha sobre o livro e vim direto pra cá.

    Eu gostei da reflexão sobre o quanto o transcendental vem sendo deixado de lado em favor de explicações mais de natureza fisicalista, como explicar experiências religiosas em termos de atividade cerebral, ao invés de uma narrativa fenomenológica sobre a experiência em primeira pessoa.

    Isso é objeto freqüente das minhas reflexões.

    Tem algum texto ou livro que aborde isso? Queria ter mais base.

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    1. Camila von Holdefer

      Também gostei muito das colocações do Daniel Galera, Felipe. Às vezes releio a entrevista para descobrir novos pontos.
      O livro que utilizei na resenha, o do Steiner, tangencia esse aspecto que você mencionou. Me parece uma das melhores leituras para acompanhar Meia-noite e vinte. Também há boas reflexões em Roberto Calasso (A Literatura e os Deuses), ainda que vistas por outro ângulo. E aí temos a filosofia: Alva Noë é meu favorito, mas ele ainda não foi traduzido para o português.
      Muito obrigada pela leitura. 🙂

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    2. Camila von Holdefer

      Um trecho do Calasso que encontrei aqui:

      De que falam os escritores quando mencionam os deuses? Se aqueles nomes não pertencem a um culto — nem àquele culto metafórico que é a retórica –, qual será o seu modo de existir? “Os deuses tornaram-se doenças”, escreveu Jung uma vez, com reveladora franqueza. A informe massa psíquica é o lugar onde foram recolher-se todos os deuses, assim como os demais fugitivos do tempo. Mas isso corresponde a uma diminutio? Não poderia, ao contrário, ser considerado um retorno às origens — ou, ao menos, um recuo para aquele recinto de onde os deuses sempre saíram? Porque — a despeito do que sejam, de fato — os deuses se manifestam, acima de tudo, como eventos mentais. Ao contrário da ilusão moderna, as forças psíquicas são fragmentos dos deuses, e não os deuses fragmentos das forças psíquicas. E, no momento em que se veem reduzidos apenas a elas, já que não têm mais uma existência reconhecida nos simulacros de uma comunidade ou, ao menos, num cânone de imagens, o choque pode ser violento e intratável, a não ser com o léxico degradante da patologia. É exatamente esse o momento em que a literatura pode transformar-se num estratagema eficaz para fazer [com] que os deuses escapem da clínica universal e, também, para reinseri-los no mundo, dispersando-os sobre a sua superfície, onde sempre residiram, se for verdade, como escreveu o neoplatônico Salústio, que “até o próprio universo pode ser considerado um mito”.

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      1. Felipe

        Camila, obrigado pelo esforço de transcrever esse trecho. Adorei! Indo direto pra minha lista de desejos agora.

        Senti inevitavelmente a memória dos sentimentos da vez que li O Homem e Seus Símbolos, do Jung. Ainda que eu ache que o modelo explicativo da psicologia dele careça de certa acurácia, suas reflexões provocam belos insights sobre literatura e mitologia. É um dos legados positivos das escolas de psicologia dinâmica [as de ascendência psicanalítica, Freud, essas coisas…].

        Enfim, agradecido!

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  6. Cezar Santos

    Bela entrevista. Quanto à batalha de egos, é fato. Mas entrevistas são isso, o que não as invalida, antes pelo contrário. O interessante é que fatos literários foram expostos para ciência e lembranças dos leitores. Parabéns à blogueira. Talvez eu leia o livro do Galera. O único dele que li, Mãos de cavalo, um tanto incensado nas resenhas jornaleiras, me decepcionou um pouco, o que me afastou.

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  7. Felipe Melo

    Nossa, que entrevista maravilhosa! Embora você não concorde, pra mim é o melhor livro do Galera (Meia Noite e Vinte). Senti que ele lapidou tudo aquilo que colocou nos demais livros (li todos na ordem) e chegou num ápice de ideias, que não é tão pretensioso quanto o “Barba” e nem tão digerível quanto um “Cordilheira”.
    Também não achei batalha de egos, como alguns disseram, muito pelo contrário… mostra que conseguiram fugir do óbvio, que possuem bagagem e conhecimento, e que escrevem bem demais. Não conhecia nem metade dessas citações e estou indo atrás, rsrsr.

    Obrigado.

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