Para Daniel Pellizzari,
F.H.A.N.P.T.M.B.,
que me ensinou muito sobre este livro.
Com tradução de Caetano Galindo, Graça infinita finalmente está disponível para os leitores brasileiros. Um intervalo de quase vinte anos separa a publicação original da edição em português, lançada pela Companhia das Letras no final de 2014.
Graça infinita é o terceiro livro do autor editado no país. O volume de contos Breves entrevistas com homens hediondos, publicado pela Companhia das Letras em 2005 (tradução de José Rubens Siqueira), não foi recebido com entusiasmo. A coletânea de ensaios Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, lançada em 2012 pela mesma editora (organização de Daniel Galera, que coassina a tradução com Daniel Pellizzari), privilegiou o leitor sem intimidade com a escrita de David Foster Wallace — os ensaios são mais acessíveis que os contos e os romances. A iniciativa foi bem-sucedida, e ajudou a preparar o público para acolher Graça infinita.
Passei pouco mais de um mês alternando entre o e-book e o calhamaço de um quilo e meio, e intercalando o próprio livro com alguns mais breves e menos exigentes. Aqui estão minhas notas sobre Graça infinita.
Estruturei o texto como um dodecaedro, um dos poliedros de Platão. São 30 arestas, 20 vértices e 12 faces (pentágonos). Para a montagem, fatiei a planificação mais conhecida do dodecaedro (abaixo). A base do texto foi feita a partir dela. Cada um dos pontos é um tópico composto de um ou mais parágrafos. Alguns têm a mesma cor e letra, p. ex. E, e1 e e2 — que, com o dodecaedro montado, formam o mesmo vértice. É um dos desafios da estrutura: as entradas com a mesma cor/letra devem ser complementares, ou seja, devem dar continuidade a um mesmo assunto ou formar uma espécie de unidade.
Os pontos que não estão nas extremidades do dodecaedro planificado (marcados aqui como ∃, →, ∇, ∑, ∫, ∀, ∅, π, ∞ e ⊆) também valem, ou seja, também são vértices e formam tópicos. Assim:
Isso significa que cada um dos pentágonos (aqui, faces) devem, além das letras/cores idênticas, formar uma unidade. É o caso, p. ex., de G, e1, →, ∃ e d2, quando lidos em qualquer ordem. Assim:
Mas o principal desafio é fazer a coisa toda funcionar a partir da mera ligação entre um ponto e outro — de G., p. ex., é possível ir para d2 ou e1. Importante: dividi a planificação do dodecaedro em dois lados: o lado Γ (Gama) e o lado Ξ (Csi). Há uma sutil diferença de abordagens entre eles. Para começar a leitura de ponta a ponta, você pode partir de qualquer um dos lados e de qualquer um dos tópicos. Para seguir em frente, basta clicar em uma das opções de sequência. Boa sorte.
Comece:
∃
As palavras usadas para definir a obra de James O. Incandenza, o cineasta obscuro de Graça infinita, são muito semelhantes às que se costuma empregar — de forma equivocada — para caracterizar a escrita de David Foster Wallace. Na condição de autor de filmes, J. O. Incandenza seria “alguém tecnicamente virtuosístico mas narrativamente chato, desprovido de tramas, estático e não suficientemente interessante”. Aplicar a descrição a David Foster Wallace é o mesmo que acusar o desconhecimento tanto de sua não ficção quanto de sua ficção. Graça infinita, o romance mais ambicioso do norte-americano, questiona a noção de que toda demonstração de domínio técnico (mesmo próxima do exibicionismo, o que talvez seja o caso) é desinteressante, mero exercício esvaziado de sentido. (→ • ∫ • d1 • d2)
→
Mais acessível que sua ficção, a coletânea de ensaios Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo é ideal para o primeiro contato com a escrita de David Foster Wallace. No prefácio do livro, ao diferenciar e contextualizar a produção do norte-americano, o escritor Daniel Galera define Graça infinita como um romance “colossal em tamanho e ousadia, fragmentado e saturado de informação como a existência moderna”. Seus ensaios, que costumam acomodar alguma inventividade, contêm tanta informação quanto o formato e o espaço permitiram, o que envolve as numerosas notas de rodapé. As inovações mais profundas, no entanto — incluindo um trabalho brutal com a linguagem —, foram destinadas aos contos e aos romances, em especial ao monumental Graça infinita. O resultado não é, como muita gente acredita, pura afetação. Graça infinita, escreve Galera no prefácio de Ficando longe…, “estabeleceu um novo parâmetro de ambição para os seus contemporâneos e cristalizou de maneira gloriosa o projeto literário de seu autor: conciliar o experimentalismo formal de seus heróis pós-modernistas, como John Barth, Donald Barthelme e William Gaddis, com a forma emotiva da literatura mais convencional e a preocupação moral propositiva do romance social”. David Foster Wallace não apenas une os recursos como investiga o valor automático atribuído a alguns deles. (∃ • e1 • e2 • ∇)
∇
É possível explicar a ficção através da ficção? “Impulso estranho”, microconto de Lydia Davis, dá uma ideia do páthos de Graça infinita:
“Olhei pela janela. O sol brilhava e os lojistas tinham saído para se aquecer na calçada e ver o movimento. Mas por que estavam cobrindo os ouvidos com as mãos? E por que os passantes corriam pela rua como se perseguidos por um espectro monstruoso? Logo tudo voltou ao normal: o incidente foi apenas um momento de loucura em que as pessoas não suportaram mais as frustrações de suas vidas e cederam a um impulso estranho.”
(Tipos de perturbação. Companhia das Letras, tradução de Branca Vianna.)
Os experimentos de Lydia Davis com os gêneros literários, que costumam resultar em narrativas difíceis de classificar, colocam a autora em algumas das trilhas abertas por David Foster Wallace. “Impulso estranho” (minúsculo) dialoga com Graça infinita (imenso) de várias maneiras. No episódio descrito por Lydia Davis, um observador ou uma observadora olha pela janela e vê um grupo de pessoas desesperadas — que, segundo ele ou ela, “não suportaram mais as frustrações de suas vidas”. Tudo indica que os personagens não especificados do conto abandonaram uma configuração mental padrão (e confortável) para encarar a realidade sem filtros. Do seu posto na janela, o narrador ou a narradora não se deixa contaminar pela cena: ele ou ela permanece calmo ou calma enquanto descreve o que vê. Já o desespero em Graça infinita é contagioso. O observador dos personagens que se debatem no romance de David Foster Wallace (i.e., o leitor) dificilmente permanecerá no papel de mero espectador. Com ou sem vontade, ele se junta ao grupo dos que cobrem os ouvidos com as mãos e correm como se perseguidos por “um espectro monstruoso”. O espectro em Graça infinita não é senão a crueza e a intensidade com que o autor narra a maioria das cenas. O tijolo de um quilo e meio e mais de mil páginas desaba com vontade sobre o leitor, que é desafiado a suportar seu peso — e falha, claro. Os personagens do romance, centrais e secundários, eventualmente cedem às próprias frustrações — alguns de forma branda e acidental, como se relutassem em admiti-las, outros caindo em um abismo existencial do qual será difícil sair. Se os neurônios-espelho de um leitor estiverem funcionando normalmente, ler Graça infinita será o mesmo que deixar de lado as preocupações imediatas e cotidianas e mergulhar em uma análise das diferentes maneiras de se encarar a realidade circundante. Não há filtros. A força da narrativa permite a imersão e a identificação totais. E a identificação nem sempre é confortável. Às vezes é esmagadora. (→ • a1 • a2 • ∑)
∑
O caráter hiperbólico — o detalhismo, a enxurrada de informações, o estilo indireto livre levado ao limite — não pode ser isolado a fim de a explicar o que causa a tensão que é parte importante da experiência de leitura de Graça infinita. Unir todas as pontas, o que inclui olhar para a estrutura em cacos e para os temas complexos, pode ajudar a explicar o que acontece. Só então é possível concluir (e isso parece o mais importante de tudo) que David Foster Wallace opera em um extremo absoluto da própria capacidade e da própria consciência. Tudo por conta da vontade de levar o leitor a enxergar certas armadilhas da (digamos) maneira de se relacionar com o real. Não espere piedade. A ideia por trás de Graça infinita é a de que não se pode prescindir do autoconfrontamento, e que a fuga da realidade, um comportamento tão comum que costuma ser automático, toma diferentes formas. Para provar o ponto, muita coisa foi despejada em Graça infinita, e de uma maneira intencionalmente caótica. O resultado, claro, é desconcertante. A única concessão de David Foster Wallace é um humor sutil, que acaba tornando certas cenas ainda mais macabras por contraste. Esse tipo de humor dificilmente consegue minimizar alguns dos choques maiores. Ao contrário: ele os amplia. Assim, a concessão não é bem uma concessão. É uma piada macabra. Ao leitor resta a obrigação de cruzar essa fronteira do desassossego, indo muito além da mera inquietação. (∇ • b1 • b2 • ∫)
∫
Em Como funciona a ficção (Cosac Naify, tradução de Denise Bottmann), o crítico literário James Wood aponta David Foster Wallace como um mestre do estilo indireto livre. O norte-americano conseguiria conciliar “as percepções e a linguagem do autor com as percepções e a linguagem do personagem”. Segundo Wood, David Foster Wallace “escreve sobre e de dentro dos personagens, e assim [explora] questões de linguagem mais gerais e abstratas”. O autor praticou o “estilo indireto livre não identificado”, já que as vozes que emergem de suas narrativas levam ao extremo os maneirismos que definem sua condição ou qualidade mais importante. Dadas a frequência e a intensidade com que David Foster Wallace emprega o recurso, não surpreende que Wood tenha dito que a “linguagem de narração não identificada de Wallace é pavorosamente feia e dói por páginas a fio”. Ao assumir o modo como o falante se expressa, que nem sempre é agradável — o exemplo de Wood em Como funciona a ficção, que não foi retirado de Graça infinita, é o jargão midiático —, o autor pode se ver forçado a renunciar à fluidez ou à clareza. A narração também pode “doer por páginas a fio”, uma vez que David Foster Wallace “leva seu método de imersão total aos extremos da paródia” e “não hesita em narrar vinte ou trinta páginas” no estilo proposto. É brilhante e é aflitivo, e exige alguma cumplicidade por parte do leitor. Nem todos ficam satisfeitos com o artifício. Segundo Wood, “David Foster Wallace é muito bom em encarar a plenitude do tédio”. Por paradoxal que pareça, a comicidade faz parte daquilo que tende a exasperar alguns leitores. O próprio James Wood admite que, na escrita de David Foster Wallace, o “grau de detalhamento é apresentado de maneira cômica ou irônica”. Aquele que não entender a piada — ou não puder encontrar nela algum sentido e beleza — certamente não irá engrossar as fileiras de fãs de Graça infinita. O próprio Wood não parece disposto a isso. Em outra ocasião, o crítico se mostrou ainda mais impiedoso com o trabalho de David Foster Wallace — e um tantinho cego. No prefácio de Pulphead, volume que reúne ensaios de John Jeremiah Sullivan, James Wood escreve que Sullivan é “menos neurótico” que o autor de Graça infinita, cuja “sensibilidade compassiva” seria “bloqueada por uma obsessiva consciência de si, ou, quando desbloqueada, às vezes [viria] à tona como puro sentimentalismo”. A neurose de David Foster Wallace, que não pode nem deve ser negada, é um dos fatores que tornam sua escrita tão impactante — e dolorosa. Quanto à “consciência de si”, não fica claro, no prefácio de Wood, de que maneira ela seria responsável por bloquear a “sensibilidade compassiva” do escritor. Wood dá a impressão de não ter compreendido o ponto mais importante da obra de David Foster Wallace — justamente o que defende que a autoconsciência, ao contrário do que parece intuitivo, é o primeiro passo para quem deseja enxergar e se identificar com o outro. O próprio sentimentalismo de David Foster Wallace, que emerge justamente nos melhores ensaios — e indiretamente em Graça infinita —, é algo defendido pelo autor. (∑ • c1 • c2 • ∃)
a1
Graça infinita força o leitor a encarar aquilo que boa parte dos personagens prefere ignorar. As diferentes formas de evasão e autoengano são, aliás, bem marcadas no romance de David Foster Wallace. Observar a dissimulação dos Incandenza, por exemplo — que talvez se aproximem do ideal que Tolstói tinha em mente ao mencionar as famílias infelizes —, é uma boa forma de compreender este que é um dos pontos cruciais do livro. Tudo se resume ao medo de sentir; o terror de encarar de frente o que parece insuportável quando visto por uma fresta. Um dos personagens secundários do livro, o canadense Marathe — membro de uma célula separatista quebequense, Les Assassins des Fauteuils Rollents —, observa que o “medo da dor é multiplicadamente pior que a dor da dor”. Quando não está sofrendo por um motivo concreto, boa parte do elenco bizarro de Graça infinita sofre um bocado por antecipação — ou seja, sofre com medo de sofrer. Seus meios de escapar da dor, todavia, não são sempre iguais. Podem incluir substâncias diversas, o autoengano do tipo simples, a arte em suas mais variadas modalidades e formas ou uma obsessão que implica depositar a energia e a atenção em um objetivo específico a fim de não reparar, ou fingir não reparar, na realidade circundante. Numa cena, Avril Incandenza — ironicamente, já que Avril é uma das personagens mais embusteiras do livro — tenta explicar pacientemente para Mario, o filho do meio, o mecanismo da ocultação e/ou da negação: “As pessoas, então, quando ficam tristes, mas as pessoas que não conseguem se deixar ficar tristes, ou expressar, essa tristeza, eu estou tentando dizer meio aos pedaços, essas pessoas podem causar uma impressão, em alguém que é sensível, de não estarem exatamente bem. Não estarem bem ali. Vazias. Distantes. Cinzas. Distantes. Desligadas era um termo da minha infância. Frias. Amortecidas. Desconectadas. Distantes. Ou elas podem beber álcool e usar outras drogas. As drogas tanto anestesiam a tristeza real quanto permitem que uma versão meio torta da tristeza tenha algum tipo de expressão (…).” Substâncias diversas e nem sempre lícitas são o meio favorito de evasão em Graça infinita, o que vai na esteira da busca pelo prazer ilimitado — outro aspecto importante da trama. Mas a ideia de evasão assume duas formas, que, por sua vez, se contaminam mutuamente — a busca e a fuga. Segundo o neurologista Oliver Sacks (A mente assombrada, Companhia das Letras), “a cocaína e as anfetaminas estimulam os ‘sistemas de recompensa’ no cérebro, que são, em grande medida, mediados pelo neurotransmissor dopamina; isso vale também para os opiáceos e o álcool”. Não se trata de uma simples uma fuga, claro: é a fuga em busca de alguma ilusão que conforte. No mesmo livro, Sacks diz acreditar que viver o presente não é o bastante para o ser humano. Precisamos “de transcendência, de arroubo, de escape; precisamos de significado, compreensão e explicação; precisamos enxergar padrões gerais em nossa vida”. Também precisamos “de esperança, de um senso de futuro”. Assim como criaturas reais, os personagens de Graça infinita também necessitam dos consolos listados pelo neurologista. Todas as suas buscas, no entanto, se assemelham mais a fugas. E suas fugas se assemelham a buscas. Não é à toa que Graça infinita pode ser um jogo de espelhos bem ardiloso. (∇ • f1 • j2)
a2
Dos muitos meios de se evitar a realidade discutidos no livro, a perseguição obsessiva de um objetivo concreto é o mais difícil de ser percebido como um comportamento nocivo. O assunto é abordado nas passagens que têm como cenário a Academia de Tênis Enfield, onde alguns dos personagens mais jovens de Graça infinita — personagens cujo maior objetivo é a entrada no circuito profissional de tênis — treinam com dedicação e seriedade. Para Hal Incandenza, ele mesmo um dos garotos que sonham com o esporte de alto nível, a “dedicação e a energia constante necessárias para a verdadeira perspicácia e expertise eram exaustivas só de imaginar”. Incandenza é um tenista promissor, mas dá sinais de que algo não vai bem — a sequência inicial de Graça infinita, aliás, já deixa isso claro. Hal chega à conclusão, auxiliado pela própria pedagogia da Academia de Tênis Enfield — comandada por sua família —, de que qualquer obsessão pode esconder algo mais dramático. “Agora me parecia ultimante meio que um milagre negro que as pessoas chegassem mesmo a dar grande importância a um tema ou um objetivo e continuassem assim por anos a fio. Pudessem dedicar a vida inteira a isso. Me parece admirável e ao mesmo tempo patético. Nós estamos todos morrendo de vontade de entregar a nossa vida a alguma coisa, de repente. Deus ou Satã, política ou gramática, topologia ou filatelia — o objeto parecia um detalhe pra essa disposição de se entregar totalmente. A jogos ou agulhas, a outra pessoa. Algo de patético nisso. Uma fuga-de que assume a forma de um mergulho-em. Fuga de quê, exatamente?” Para Hal Incandenza, “o sentido original de adição envolvia estar preso, dedicado, fosse jurídica ou espiritualmente”. Hal não chega a perceber que marcar o limite entre um interesse corriqueiro e a obsessão (movida pelo desejo de fuga) nem sempre é fácil. As coisas se complicam quando o interesse em questão envolve o já mencionado objetivo-a-ser-alcançado. De diferentes maneiras, Graça infinita prova que conquistar o se quer não só não garante o bem-estar como pode acabar com ele (o bem-estar) num piscar de olhos. Cuidado com o que você deseja: eis um clichê que agradaria a David Foster Wallace. (∇ • J)
b1
Se alguns dos personagens de Graça infinita levam o autor a abusar do estilo indireto livre, outros fogem à regra. Um dos técnicos da Academia de Tênis Enfield — treinador das crianças e adolescentes — é o alemão Gerhardt Schtitt, cujo discurso, quando afetado pelo narrador, é mais brando e coerente do que o esperado. Mesmo cultuando a firmeza e a disciplina, Schtitt “sabia que o tênis de verdade não era a mistura de organização estatística e potencial expansivo que os engenheiros do jogo reverenciavam, mas na verdade o contrário — não organização, limite, os lugares em que as coisas se rompem em cacos e beleza”. Apesar da máscara de dureza e irritação, Schtitt é doce e gentil — em especial com Mario Incandenza, um menino deficiente. Considerando as variáveis da equação em um jogo de tênis, o técnico sentia “que era uma questão não de redução, de maneira alguma, mas — perversamente — de expansão, da palpitação aleatória do crescimento descontrolado, metástico — admitindo cada bola bem rebatida n possíveis respostas, n² possíveis respostas a essas respostas, e assim por diante”, uma “infinidade de infinidades de escolha e execução, limitada pelo talento e pela imaginação do eu e do adversário, recurvada sobre si própria pelas fronteiras delimitadoras da habilidade e da imaginação que derrubavam finalmente um dos jogadores, que evitavam que ambos vencessem, que faziam daquilo, finalmente, um jogo, essas fronteiras do eu”. Schtitt é, além de tudo, muito filosófico. Duas coisas são importantes nas ideias do técnico. (a) O pensamento de Schtitt também funciona como uma metáfora para o embate entre leitor e livro, em que cada uma das passagens abre possibilidades para inúmeras reações/respostas de quem lê. (b) Quando Schtitt fala nas “fronteiras do eu”, o que faria da coisa toda um jogo, também é possível considerar a abertura e disposição do leitor diante das vozes dos personagens e do próprio David Foster Wallace. É fácil notar que as passagens de Graça infinita sobre o tênis não são, de alguma forma, apenas sobre o tênis — são claramente uma metáfora para outras situações, de modo que imaginar cada uma delas também depende da vontade e da criatividade de quem lê. Mesmo as lições que Schtitt transmite aos jovens com seu sotaque peculiar — lições de perseverança e de meios de suportar as adversidades — podem ser aplicadas a contextos bem diferentes. (∑ • J)
b2
Quando o alemão Gerhardt Schtitt, técnico da Academia de Tênis Enfield, diz que “o único consenso público a que um garoto tem que se render é a reconhecida primazia da necessidade de perseguir em linha reta essa ideia plana e míope da felicidade pessoal” ele está, é claro, sendo irônico. Schtitt é um personagem formidável, e tudo leva a crer que é uma paródia de um filósofo alemão — numa das cenas do livro, o narrador descreve o sistema de som do quarto (espartano) de Schtitt, que toca, adivinhe, Richard Wagner. Numa das cenas, o técnico compara os valores que foi ensinado a aceitar quando criança aos valores que vê nos Estados Unidos. (A frase sobre a “felicidade pessoal” já deixa clara a sua opinião sobre a América.) Os conselhos e ideias de Schtitt sobre o tênis nunca são apenas sobre o tênis. Numa passagem do livro: “A ideia final de Schtitt e sua única e enorme irresistível atração aos olhos do falecido pai de Mario: O verdadeiro adversário, a fronteira delimitadora, é o próprio jogador. Sempre e só o eu que está lá, em quadra, a ser enfrentado, combatido, levado à mesa em que será forçado a aceitar os termos. O garoto que compete do outro lado da rede: ele não é o inimigo; ele é um parceiro de dança. Ele é a como é que chama desculpa ou oportunidade para você encontrar o eu. Como você é a oportunidade dele. As infinitas raízes da beleza do tênis são autocompetitivas. Você compete com os seus próprios limites para transcender o eu em imaginação e execução. Sumir no jogo: romper limites: transcender: melhorar: vencer. Que é a razão de o tênis ser uma cruzada essencialmente trágica, para se aperfeiçoar e crescer como juvenil sério com ambições. Você busca vencer e transcender o eu limitado cujos limites são a mesma razão do próprio jogo. É trágico, é triste, é caótico, é agradável. Toda vida é igual, como cidadãos do Estado humano: os limites vivificantes ficam dentro, à espera de serem mortos e pranteados, repetidamente.” Mario Incandenza, que está escutando o palavrório de Schtitt, sente vontade de perguntar: “Mas então combater e vencer o eu é o mesmo que se destruir? Será que isso é tipo dizer que a vida é pró-morte?” E também: “E aí mas então qual é a diferença entre tênis e suicídio, vida e morte, o jogo e seu próprio fim?” A brincadeira com os opostos é um dos pontos fortes de Graça infinita. Outro, continuamente abordado — e que talvez deva ser visto de uma forma simplificada —, diz respeito à batalha incansável que travamos (do início ao fim) para combater nossas próprias e humanas limitações. (∑ • I)
c1
Breves pinceladas sobre o enredo. Há dois núcleos principais. O primeiro, a Academia de Tênis Enfield, mistura de escola regular e complexo esportivo, é uma instituição de elite dedicada a formar tenistas profissionais ou semiprofissionais. Já a Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool, um lugar que “fede a tempo passando”, funciona como um limbo entre duas fases das vidas dos internos. A Academia de Tênis Enfield foi fundada por James Orin Incandenza, que também foi e viria a ser, respectivamente, “uma figura de grande estatura nos círculos da ótica e do cinema de vanguarda”. No fim da vida, Incandenza lança um filme chamado “Graça infinita”, um Entretenimento (com letra maiúscula) tão viciante que se converte em uma espécie de arma letal. A então viúva de J. Incandenza, Avril Incandenza, é uma “agitadora de alto nível do mundo acadêmico da gramática prescritiva” e uma das gestoras da Academia de Tênis Enfield. Seus três filhos têm pouco em comum. Orin, o mais velho, abandonou o tênis e abraçou o futebol americano. Orin está (digamos) longe de ser um gênio. Hal, o caçula, é um “prodígio lexical e tenístico possivelmente superdotado”. O livro tem início com uma sequência estranha protagonizada e narrada por ele. Mario, o filho do meio, é severamente deformado e apresenta algum atraso no desenvolvimento intelectual — uma de suas características mais notáveis, tratada como uma qualidade e não como um defeito, é a incapacidade de compreender o cinismo e a ironia. Vários estudantes, técnicos e funcionários da Academia de Tênis Enfield têm suas peculiaridades descritas em detalhes ao longo do romance. A Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool, instituição que acolhe uma impressionante variedade de ex-toxicômanos cujas particularidades também são narradas longamente, funciona, até certo ponto do livro, como um cenário à parte. O personagem que se destaca neste segundo núcleo é Don Gately, funcionário da Casa, ele próprio um ex-viciado em drinas que cometeu um crime ou outro a fim de manter o vício. No mundo distópico concebido por David Foster Wallace, os anos são subsidiados — para suprir uma lacuna na publicidade, ganham patrocínio de grandes empresas. Boa parte da ação que realmente importa, o ponto em que as coisas começam a andar de verdade, ocorre no mês de novembro do Ano da Fralda Geriátrica Depend. Nessa altura das coisas, Canadá, México e Estados Unidos formam a ONAN, a Organização das Nações da América do Norte. Os EUA forçaram o Canadá a aceitar um território que serve como depósito de resíduos nocivos. Canadenses separatistas do Québec, alguns deles sem os membros inferiores — conhecidos como Les Assassins des Fauteuils Rollents — lutam pela autonomia do seu lugar de origem. (∫ • I)
c2
São muitas as vozes em Graça infinita. Além dos protagonistas — se é possível falar em protagonistas —, os personagens secundários do romance, mesmo aqueles que têm sua história contada em uma ou duas páginas, têm uma força surpreendente. (Não mais do que três frases são suficientes para David Foster Wallace conferir contornos e nuances a praticamente qualquer criatura.) Trazer alguns destes personagens à tona é uma boa maneira de explicar o sucesso de Graça infinita. Uma das figuras mais exóticas é Joelle van Dyne, a ex-namorada de Orin que usa um estranho véu para cobrir o rosto. Outros tipos curiosos: o Coitado do Tony Krause, transexual viciado em heroína que atrai problemas com uma frequência alarmante; Randy Lenz, um residente da Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool que encontra um jeito macabro de aplacar as frustrações do confinamento e da abstinência; Bruce Green, outro interno da Ennet cuja tragédia pessoal inclui uma cobra de brinquedo numa lata de amêndoas e uns charutos explosivos; Michael Pemulis, o aluno da Academia de Tênis Enfield que repassa alguns fármacos de forma discreta para os colegas; Gerhardt Schtitt, o peculiar ténico de tênis de origem alemã com ideias próprias sobre competir e vencer; Kate Gompert, outra moradora temporária da Casa Ennet, depressiva e com histórico de dependência de maconha; Ken Erdedy, com dilemas semelhantes aos de Gompert; Ortho Stice, outro aluno da Academia de Tênis Enfield, que só veste preto e é constantemente assombrado por objetos variados. Há alguns oradores de grupos dos AA de Boston cujas histórias — e cujo discurso, constantemente modificado e adaptado para se adequar ao perfil do personagem — são uma espécie de soco bem dado no estômago do leitor. (∫ • H)
d1
James O. Incandenza é um dos personagens mais caricatos de Graça infinita. Seus filmes, quando resolve seguir a carreira de cineasta, se destacam pela técnica e por algumas inovações conceituais, mas nunca pelo enredo. É como se Sipróprio — a maneira pela qual J. Incandenza é conhecido pelos mais íntimos — nem sempre dispusesse dos mecanismos que possibilitam a compreensão dos dramas humanos mais básicos, sendo a empatia o principal deles. Hal Incandenza, o filho mais novo do cineasta, reflete sobre isso: “A inventividade conceitual ou técnica não tinha lá muito interesse para as plateias de cinema de entretenimento, no entanto, e uma forma de ver o fato de Sipróprio ter abandonado o anticonfluencialismo é que nos seus últimos vários projetos ele estava tão desesperado para fazer alguma coisa que as plateias comuns dos EU pudessem achar divertida, interessante e conducente ao autoesquecimento [em oposição ao autoconfrontamento] que fez tanto [atores] profissionais quanto amadores chafurdarem profundamente em tudo quanto era emoção.” Está claro que David Foster Wallace não coloca as obras de arte que podem levar ao autoesquecimento (o entretenimento de massa) em oposição às que podem conduzir ao autoconfrontamento. É mais complicado do que isso. Quando se analisa o que o autor entrega em Graça infinita — inovação formal e enredo paralisante com um quê de lição de moral —, é fácil chegar à conclusão de que é possível, mas nem sempre fácil, unir uma coisa e outra. No caso das obras de James Incandenza, diz Hal, “nós acabamos sentindo e pensando não nos personagens mas no próprio [filme]”. Em Graça infinita, por outro lado, os personagens têm grande apelo e verossimilhança — permitindo a identificação —, o que não exime o leitor da responsabilidade de decifrar a própria estrutura do romance. Para Hal e para os críticos, o dilema consistia em “saber por que tantos filmes esteticamente ambiciosos eram tão chatos e por que tantos entretenimentos comerciais redutores e vagabundos eram tão divertidos”. David Foster Wallace procura quebrar o mito com o próprio romance. E consegue. (∃ • H)
d2
Acordo pré-nupcial do céu e do inferno é um dos filmes mais fascinantes da obra de James O. Incandenza, o cineasta alcoólatra de Graça infinita. Joelle van Dyne, que atuou em alguns dos trabalhos de Incandenza, resolve assisti-lo várias vezes seguidas. O trecho com suas conclusões é extenso, mas toca em um ponto importante do livro:
‘Tipo p. ex. o take imóvel contra-plongé de duzentos e quarenta segundos do Êxtase de St. Teresa de Gian Lonrenzo Bernini, que — sim — travava completa e irritantemente o movimento dramático de ‘Acordo…’ e não acrescentava nada que uma imagem imóvel de quinze ou trinta segundos não teria acrescentado igualmente bem; mas na quinta ou sexta reprise Joelle começou a ver o take imóvel de quatro minutos como algo importante pel que ele deixava de fora: o filme todo era do P. de V. [ponto de vista] de um vendedor alcoólico de saquinhos plásticos, e o vendedor alcoólico de saquinhos plásticos — ou na verdade a cabeça dele — estava na tela a todo momento (…) a não ser durante os quatro minutos da narrativa em que o vendedor alcoólico de saquinhos plásticos ficou na sala Bernini da Vittoria, e em que a arrebatada estátua encheu a tela e se espremeu contra seus quatro cantos. A estátua, a presença sensórea da estátua, permitiu que o vendedor alcoólico de saquinhos plásticos escapasse de si próprio, da sua ubíqua cabeça convoluta e cansativa, ela via, era por isso. O take mudo de quatro minutos não era só um gesto artístico de mão pesada ou uma sacanagem com a plateia. [O filme] apresentava o autoesquecimento do álcool como algo inferior ao da religião/arte (como o consumo de bourbon fazia a cabeça do vendedor inchar progressiva e horrendamente, até que no fim suas dimensões escapavam do enquadramento, e ele teve grande e humilhante dificuldade de enfiar a cabeça pela porta da frente da Vittoria).”
Num romance que trata do conflito entre o autoesquecimento e o autoconfrontamento, a arte é citada como meio que possibilita tanto um como o outro. Em A transfiguração do lugar-comum, Arthur Danto dá boas respostas à questão que emerge da passagem sobre o filme de James O. Incandenza — que se relaciona em maior escala com o próprio livro. Danto começa abordando a mimese — a realidade refletida num simples espelho, o que, por si só, não poderia ser chamado de arte. Danto chega a mencionar o jogo de espelhos em Hamlet, a referência mais importante de Graça infinita. Em seguida, num salto lógico, passa a falar do narcisismo contido na ação de enxergar ou projetar a si mesmo em um livro ou filme. “Embora seja verdade que Narciso se enamorou de si próprio, ele não sabia de início que estava apaixonado por si mesmo. O objeto inicial de sua paixão foi sua própria imagem, devolvida a ele pela superfície serena de uma fonte cristalina — um espelho natural —, que Narciso a princípio acreditou ser um jovem maravilhoso e encantador que o mirava desde as profundezas. Seria fascinante especular como Narciso deduziu que era sua própria imagem.” Ou seja: Narciso não precisou da arte para confrontar a realidade: precisou de um simples espelho. Para Arthur Danto, “Narciso morreu de autoconhecimento (…) numa lição prática de suicídio epistemológico que deveria ser levada a sério por aqueles que pensam que a famosa máxima cognitiva de Sócrates, ‘conhece-te a ti mesmo’, pode ser seguida impunemente”. Não há dúvida de que “suicídio epistemológico” é uma boa definição para a leitura de Graça infinita, ainda que o caso aqui seja o da própria arte que conduz ao autoconhecimento. Em outras palavras, o livro abre espaço para a identificação — o que acontece, em menor ou maior grau, com toda literatura. Danto continua: “Narciso tornou-se servo e senhor em uma só pessoa e sem dúvida morreu daquilo que Sartre diz ser uma ‘paixão inútil’, que é tornar-se uma coisa autoconsciente, cujo exterior e cujo interior são um só.” Arthur Danto logo chega a Hamlet: “A ideia de Hamlet de fazer de uma peça de teatro um espelho é adequada ao contexto, porque ele tem a intenção de mostrar ao rei um reflexo de sua própria estatura moral. Mas para o rei a peça parece ser bem diferente daquela que o resto da plateia compreende; os outros espectadores talvez a vissem como uma imitação de uma ação, se tivessem lido Aristóteles, ou como uma alusão genérica à volubilidade da afeição das mulheres e aos meandros da usurpação política, ou, ainda, como um mero entretenimento palaciano. Qualquer pessoa pode se ver refletida numa obra de arte e descobrir algo sobre si mesma (…)”. Ele tem razão. “Uma mulher libertina poderia ver sua degradação numa pintura da Virgem Maria. Ainda assim, não há necessidade da arte para esse tipo de autoconsciência, como demonstram as análises de Sartre.” As análises de Sartre — e outras, numa linha semelhante, de Maurice Merleau-Ponty, para citar apenas um — remetem ao corpo simultaneamente vidente e visível. Se Joelle van Dyne chega à conclusão de que o autoesquecimento da arte é superior aos demais, Arthur Danto parece admitir que o autoesquecimento na arte nem sempre é possível, visto que ela pode provocar justamente a identificação, o que eliminaria a predominância do, digamos, entorpecimento. (Esta não é a tese central de Graça infinita: no livro, certos tipos de entretenimento podem conduzir à completa inação e à ausência de atividade mental significativa.) No entanto, Arthur Danto não acredita que a arte seja necessária para que se alcance a autoconsciência — no que ele parece estar enganado. As análises de Sartre — e nosso próprio embate com o mundo — levam ao mesmo ponto que a empatia, ou a empatia gerada por personagens fictícios também conduz. É difícil acreditar que Danto, um filósofo experiente e com intimidade com a lógica, escreveu que “não há necessidade da arte para esse tipo de conhecimento” logo em seguida a uma argumentação que parece sugerir justamento o contrário. No caso de Graça infinita, temos, por conta da temática, uma autoconsciência aumentada — eu estou consciente de que estou consciente com este livro. É um tantinho enlouquecedor. Enfim. “Narciso acha feio o que não é espelho”, diz a letra de Caetano Veloso. Bem, nem sempre. Muita coisa em Graça infinita é horrenda — mas é espelho, sim. (∃ • G)
e1
Numa passagem de Graça infinita, um membro dos Alcoólicos Anônimos de Boston tenta justificar os clichês dos programas de doze passos: “Um peixe sábio, velho e de longas barbas vai nadandinho até três peixes mais jovens e diz: ‘Bastarde, gurizada, comé que tá a água?’ e vai embora; e os três peixes mais jovens ficam olhando ele nadar e olham um para o outro e dizem: ‘Mas que porra que é água?’ e vão embora”. A fábula dos peixes foi incluída posteriormente em “Isto é água”, discurso de paraninfo que David Foster Wallace pronunciou em 2005 (e que integra a coletânea de ensaios Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo). Um dos objetivos de Graça infinita é questionar os clichês de modo geral e os dos programas de desintoxicação em particular. Don Gately, membro do AA de Boston e um dos personagens centrais de Graça infinita, resume toda a questão: “Como é que as coisas ficam sendo banais? Por que será que a verdade normalmente é não apenas des- mas anti-interessante?” A ideia é que o lugar-comum contém mais verdades do que se pressupõe — o que acontece é que o uso recorrente acabou esvaziando seu sentido. Nos programas de desintoxicação de doze passos, todo mundo sabe que “quanto mais insípido” o clichê, “mais pontudos são os caninos da verdade real que ele encobre”. (→ • G)
e2
A verve de Graça infinita está explicitada em um dos textos de não ficção mais conhecidos e acessíveis do autor — “Isto é água”, traduzido por Daniel Galera e incluído na coletânea Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo. No texto, David Foster Wallace lembra que o “tipo realmente importante de liberdade requer atenção, consciência, disciplina, esforço e a capacidade de se importar genuinamente com os outros e de se sacrificar por eles inúmeras vezes, todos os dias, numa miríade de formas corriqueiras e pouco excitantes”. O escritor propõe uma mudança nada sutil na maneira como pensamos e fazemos escolhas. Ele continua: “Essa é a verdadeira liberdade. Isso é ter aprendido a pensar. A alternativa é a inconsciência, a configuração padrão, a ‘corrida de ratos’ — a sensação permanente e corrosiva de ter possuído e perdido alguma coisa infinita.” Toda a moral de Graça infinita gira em torno da importância do autoconfrontamento — tanto o dever de tomar decisões conscientes, nem sempre condizentes com nossos desejos imediatos, quanto a necessidade de enxergar, sem filtros e sem medo, o que está bem na nossa frente. Este seria único caminho possível para a liberdade genuína. (Em tempo: “Isto é água” é o discurso de paraninfo que David Foster Wallace leu em voz alta para a turma de formandos do Kenyon College em 21 de maio de 2005. Faz quase dez anos. Como estarão os formandos hoje?) (→ • f1)
G
Num romance que questiona indiretamente as fronteiras entre a sanidade e a loucura (especialmente no núcleo da família Icandenza), as referências a Hamlet surgem como um aparato importante e possível de ser ressignificado. “Sempre pareceu meio absurdo que Hamlet, apesar de toda aquela dúvida paralisante sobre tudo, nunca chegue a duvidar da realidade do fantasma. Nunca questione se a sua própria loucura afinal pode não ser fingida. (…) Ou seja, Hamlet pode apenas estar fingindo fingir”, observa o adolescente Hal Incandenza. A tendência de David Foster Wallace de criar tipos hiperconscientes não permitiria, ao que tudo indica, que houvesse um Hamlet como personagem central em sua ficção — a menos que fosse algum tipo de inteligência curta, o que não funcionaria de todo. A intertextualidade segue. Há uma referência mais ou menos obscura à peça de Shakespeare em uma das notas de rodapé ao final do livro (número 337), e outra, explícita, no nome da distribuidora de filmes do pai de Hal, James O. Incandenza, que se chama “Poor Yorick Entertainment Unlimited”. O título do romance também alude indiretamente a Yorick: “I knew him, Horatio; a fellow of infinite jest” diz Hamlet ao segurar o crânio do bobo da corte (DP). O espectro de James O. Incandenza, como na peça, também dá as caras no final do livro — ele não procura vingança, todavia. (e1 • d2)
H
Não apenas no contraponto entre o núcleo da Academia de tênis Enfield — uma instituição de elite — e da Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool — onde os internos lutam para continuar a viver — reside a crítica social de Graça infinita. O final é especialmente voltado para isso, quando as realidades distintas de dois personagens, que emergem como possíveis protagonistas, são contrapostas fortemente. (c2 • d1)
I
A crítica de David Foster Wallace a alguns tipos de arte demonstra, por si só, algo importante sobre Graça infinita:
“É questão de certo interesse perceber que as artes populares dos EUA da virada do milênio tratam a anedonia e o vazio interno como coisas descoladas e cool. De repente são vestígios da glorificação romântica do Weltschmerz, que significa estar cansado do mundo, ou um tédio gigante. De repente é o fato de que quase todas as artes aqui são produzidas por gente mais velha cansada do mundo e sofisticada e aí consumida por pessoas mais jovens que não apenas consomem arte mas a examinam em busca de pistas de como ser chique, cool — e não esqueça que, para os jovens em geral, ser chique e cool é o mesmo que ser admirado, aceito e incluído e portanto assolitário. (…) Nós entramos numa puberdade espiritual em que nos ligamos ao fato de que o grande horror transcendente é a solidão, fora o enjaulamento em si próprio. Depois que chegamos a essa idade, nós agora daremos ou aceitaremos qualquer coisa, usaremos qualquer máscara para nos encaixar, ser parte-de, não estar Sós, nós os jovens. As artes dos EU são o nosso guia para a inclusão. Um modo-de-usar. Elas nos mostram como construir máscaras de tédio e de ironia cínica ainda jovens, quando o rosto é maleável o suficiente para assumir a forma daquilo que vier a usar. E aí ele se prende ao rosto, o cinismo cansado que nos salva do sentimentalismo brega e do simplismo não sofisticado. Sentimento é igual a simplismo neste continente.” (b2 • c1)
J
Os técnicos da Academia de Tênis Enfield estão atentos para “tentar detectar nos atletas-alunos possíveis reações letais à possibilidade deles um dia atingirem o nível que estão objetivando há anos”. É uma outra fuga, que também é ilusória — a perseguição de um objetivo. Nas palavras da pró-reitora Poutrincourt: “Imagine você. Você se torna exatamente o que deu a vida para ser. Não meramente bom mas o melhor. [Você está condenado] se não tiver também por dentro alguma capacidade de transcender o objetivo, transcender o sucesso do melhor, se chegar lá.” Para Poutrincourt, se “você atinge seu objetivo e ainda não conseguiu achar alguma maneira de transcender a experiência de ter aquele objetivo como a sua existência total”, duas coisas podem acontecer. São elas: “Uma, é que você atinge o objetivo e percebe a chocante percepção de que atingir o objetivo não completa nem redime você, não deixa tudo em sua vida ‘OK’ como, em sua cultura, você é educado para presumir que vai, o objetivo, fazer isso. E aí você enfrenta esse fato de que o que você tinha achado que ia ter o sentido não tem o sentido quando consegue, e você é empalado pelo choque. Nós vemos suicídios na história das pessoas nesses pináculos.” Outra: “Ou a outra possibilidade condenada, para as étoiles [estrelas] que atingem. Elas atingem objetivo, assim, e investem tanta paixão em celebrar o atingimento quanto tinham investido na busca do atingimento. Isso se chama aqui a Síndrome da Festa Infinita. A celebridade, dinheiro, comportamentos sexuais, drogas e substâncias. O brilho. Eles se tornam celebridades em vez de jogadores, e como são celebridades só enquanto alimentam a fome da cultura-de-objetivo pelo dar-certo, a vitória, eles estão condenados, porque você não pode ao mesmo tempo celebrar e sofrer, e jogar é sempre sofrer, bem assim.” Para a pró-reitora Poutrincourt — ponto importante do livro — é necessário “mapear algum caminho entre precisar do sucesso e fazer zombaria do sucesso”. O que dialoga mais profundamente com o ver versus ser visto, uma das teses centrais do romance: “Esses meninos (…) eles estão aqui para se perder numa coisa maior que eles. Para manter as coisas como eram quando eles começaram, o jogo como algo maior, de início. Aí eles dão mostras de talento, começam a ganhar, viram peixes grandes no lago, lá gora nas grandes cidades deles, param de conseguir se perder no jogo e de ver. É uma coisa que fode com a cabeça de um júnior. Eles pagam altas granas pra vir pra cá e voltarem a se sentir peixinhos, serem trucidados, se sentirem pequenos, verem e se desenvolverem. Pra esquecerem de si próprios como objetos de atenção por uns anos e verem o que conseguem fazer quando os olhares saírem de cima deles.” E continua: “A questão aqui pros melhores alunos é inculcar neles a noção de que a questão nunca é estar sendo visto. Nunca. Se eles conseguirem incorporar isso, o Circuito não vai foder com a cabeça deles.” (a2 • b1)
∀
Ao caminhar pela Academia de Tênis Enfield, Mario Incandenza — um dos personagens mais fascinantes de Graça infinita — se parece com “alguém carregando uma pilha de coisas quebráveis por um morro escorregadio”. É uma boa metáfora para a leitura. Pense em você como Mario. Você está carregando uma pilha de coisas quebráveis que não são nada mais do que algumas das suas convicções, e o morro escorregadio que você precisa escalar é justamente Graça infinita. É difícil subir, claro, e não muito seguro. Você vai tropeçar e cair em vários momentos, e então adeus convicções, pelo menos uma ou duas delas. Uma vez no topo, no entanto, a vista é magnífica. (∅ • ⊆ • g1 • g1)
∅
Como acontece com qualquer livro, há maneiras diferentes de se envolver com Graça infinita. Há a leitura superficial e a leitura atenta — e a segunda, nem preciso dizer, não só exige um esforço maior como leva um tempo consideravelmente longo. É possível acelerar o passo, mas muitas coisas vão passar despercebidas — foi o conselho que me deram (DP), e é o conselho que dou para você agora. Anote: Graça infinita é definitivamente um mau livro com o qual se ter pressa. O detalhismo, o trabalho com a linguagem, a complexidade das tramas, tudo pede calma. Juntar as informações é tarefa difícil — não só a cronologia, que não é óbvia, mas as próprias implicações e inter-relações dos temas. Tudo em Graça infinita convida a uma espécie de embate. A despeito de abordar o entretenimento recebido de forma mais ou menos passiva, Graça infinita requer um leitor atento, curioso e incansável, que batalha continuamente com o texto. A tensão é palpável do início ao fim. Não é, em todos os sentidos, um livro leve. Algumas partes se arrastam, outras correm — e elas possivelmente não serão iguais para todo mundo. Você vai encontrar em Graça infinita um desafio pessoal — ou seja, o desafio não é o mesmo para cada leitor, acredito eu. O que é mais uma prova da força do livro. (∀ • π • h1 • h2)
π
Como acontece com livros que já viraram clássicos — lançado há quase vinte anos, Graça infinita é um deles — uma única leitura não parece bastar. Para apreender tudo o que o romance tem a oferecer, é necessário confrontá-lo de novo, e quem sabe outra vez, e quem sabe mais uma. Enquanto alguns têm intenção reler Graça infinita em breve, outros, depois de conclui-lo por teimosia, não pretendem enxergar o livro tão cedo (nunca mais, de preferência). Acontece: livros dividem opiniões, e Graça infinita especialmente. Bem, são dois grupos de leitores. Há algo em comum entre eles, porém. Pertença você ao primeiro ou ao segundo, vai entender, depois de vencer o calhamaço, por que chamam David Foster Wallace de gênio. Você pode detestar um, mas não pode negar outro. (∅ • ∞ • i1 • i2)
∞
Segundo DP, a expressão “faniquitos ululantes” é uma boa tradução para “howling fantods”. Do início ao fim de Graça infinita, diferentes personagens têm faniquitos ululantes quando o horror ou o medo ultrapassam certos limites. Avril Incandenza, viúva de J. O. Incandenza, tem faniquitos ululantes “com qualquer voz que não saia de uma cabeça corpórea viva”; os pacientes que sofrem de Alzheimer confinados na unidade vizinha à Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool causam faniquitos ululantes nos residentes que estão tentando superar a dependência química; uma das células separatistas do Québec produz faniquitos ululantes nos cidadãos dos Estados Unidos; um “veloz rangido murino” provoca em Hal Incandenza, adivinhe, faniquitos ululantes; o caso de um homem cronicamente deprimido causa faniquitos ululantes em Kate Gompert, uma residente da Casa Ennet; as maneiras de Avril Incandenza provocam faniquitos ululantes na então nora Joelle van Dyne. Como empregada por David Foster Wallace — levando em conta que “fantods” é uma palavra do século XIX que aparentemente caiu em desuso, de acordo com DP —, a expressão marca um estado de agitação extremo e desagradável. (DP acha que Wallace roubou o termo de Mark Twain, uma vez que Huckleberry Finn vivia tendo “fantods” ao avistar fantasmas no romance homônimo.) Durante a leitura da tradução de Caetano Galindo, todavia, os chamados “faniquitos ululantes” também sugeriam algo mais leve, como se em outros contextos ou cenários pudessem indicar uma disposição de ânimo altamente entusiasmada. E Graça infinita provocou em mim, de fato, os mais variados faniquitos ululantes. Bons e maus. Espero que provoque em você. (π • ⊆ • j1 • j2)
⊆
Da frase mais óbvia à mais estranha, tudo o que se pode dizer a alguém sobre a vida em geral também se pode dizer sobre Graça infinita a qualquer um que nunca tenha tentado ler o livro. (Esqueça o paternalismo ou a sensação de superioridade: é só uma maneira de descrever a coisa toda.) (1) É difícil. (2) Você vai ter que se virar. (3) Você desejaria que fosse mais leve. (4) Às vezes é difícil virar a página. (5) Certas partes vão parecer simplesmente desnecessárias, mas (acredite) elas são importantes. (6) Você vai se entediar. (7) Você vai se divertir. (8) Há o feio e há o belo, e às vezes há o feio e o belo no mesmo lugar. (9) Como Karl Ove Knausgård já adiantou (sobre a vida, não sobre Graça infinita) você vai se achar um merda várias vezes. (10) Você vai se achar meio burro várias outras também. (11) Às vezes você vai demorar para sacar o que está bem na sua frente. (12) Anos de mordomia não vão ajudar você quando o bicho pegar pra valer. (13) Muita coisa vai depender de quanta paixão você coloca no que está fazendo. Mas não exagere a ponto de ficar cego para as outras coisas, ou para as implicações daquilo com o que você está tão envolvido. (14) Você pode desejar que tudo acabe logo. Pode desejar não ter começado. (15) Às vezes você acha que não vai suportar tanta beleza. (16) Às vezes você acha que não vai suportar tantas coisas hediondas. (17) Em alguns momentos você chega mesmo perto de uma experiência religiosa. (18) Você pensa em desistir. (19) A angústia é mais ou menos permanente, como ruído ou pano de fundo — têm a ver com aquelas coisas para as quais você não tem resposta. (20) Você jamais vai entender tudo, aliás. Mas boa sorte tentando. (21) Depois que você cruzou determinada linha, a coisa toda parece interminável. (22) É difícil encarar certas situações, e mais difícil ainda admitir que elas continuarão onde estão mesmo se você se recusar a olhar uma ou outra de frente. (23) Se você estiver indiferente a tudo, bem, há algo errado. (24) Há partes fáceis e partes mais complicadas. (25) Ver o lado cômico das coisas é sempre uma boa ideia. Mas nem tudo tem um lado cômico. (26) Você pode se sentir muito otimista num segundo e absoluta e completamente miserável no outro. (27) No fim, se tudo der certo, você vai relutar em abandonar tudo isso. (∀ • ∞ • f1 • f2)
f1
Todos os que já sentiram uma agonia cartesiana que não acabou no cogito, ergo sum se sentirão acolhidos pelo autor (e pelos personagens fora da casinha) de Graça infinita. São os obsessivos, os chatos, os que não se incomodam de mobilizar todas as energias para vencer e em seguida quebrar um livro em mil pedacinhos até conseguir pelo menos reconhecer cada um deles e aí mas então* montar tudo novamente. Estes acharão o seguinte trecho o mais maravilhoso do livro: “A verdade liberta. Mas só depois de acabar com você.” Você é masoquista. Você gosta de apanhar. Você não se importa (ao contrário) de tomar uma paulada ou outra de um livro. Vinde a mim os chatos, os Finnegans Wake e tudo o mais. Você vai tentar um bocado até conseguir achar sua própria verdade sobre Graça infinita, se conseguir. E vai fazer isso mais ou menos rindo e mais ou menos chorando. Maravilha. (* Em tempo: “e aí mas então” não é o resultado de um erro de digitação. É a forma como vários personagens se expressam em Graça infinita.) (⊆ • a1 • e2)
f2
Em dado momento do livro, o ora ensimesmado Hal Incandenza sente “uma náusea cerebral”. (Era “como se precisasse chorar por algum motivo mas as lágrimas de alguma maneira estivessem parando a poucos milímetros dos olhos e ficando ali”.) A expressão “náusea cerebral” é maravilhosa para descrever o que acontece quando você lê Graça infinita por algumas horas seguidas. Imagine que as palavras ficam gravadas na superfície do seu cérebro, com uma sensação que é mais ou menos parecida com a de ser atingido por um projétil de um quilo e meio. (⊆ • E)
g1
O filme de James O. Incandenza, o cineasta esquisito do livro, também se chama “Graça infinita”. O Entretenimento (com letra maiúscula) de Incandenza é viciante a ponto de se tornar letal. Uma vez que começa a assisti-lo, o espectador está perdido para sempre. Seria a obra uma espécie de vingança? Como o pai de Hamlet, James procura acertar as contas com alguém? Na verdade não: sua intenção ao produzir “Graça infinita” é tocante. Digamos que ele quisesse se comunicar de verdade com alguém. (∀ • E)
g2
Numa conversa entre dois personagens do livro, o canadense Marathe diz ser impossível “induzir uma sensibilidade moral do mesmo jeito que [se] treina um rato”. Será mesmo? Steeply, seu interlocutor norte-americano, tem outra opinião. Para ele, “esse é o cerne do sistema educacional que você [Marathe] acha tão monstruoso”. A questão, segundo Steeply, é “ensinar o que desejar”, é “ensinar a ser livre e a “fazer escolhas bem informadas sobre prazer e postergação”. O ruído de fundo em Graça infinita é bem audível: o autoconfrontamento, que depende basicamente da vontade e de algum treino, é o único meio de “construir significados” de forma consciente e deliberada — é o que o próprio David Foster Wallace escreve num ensaio chamado “Isto é água”. É possivelmente a crueza de certas verdades — o fato de que mudar a configuração mental é também uma questão de esforço — o que torna a leitura de Graça infinita tão penosa. (∀ • D)
h1
Segundo o magnífico Don Gately, “tanto os beijos do destino quanto suas bifas ilustram a impotência básica e pessoal de um indivíduo qualquer diante dos eventos realmente importantes da sua vida: i. e., quase nada de importante te acontece porque você produziu. O destino não tem bipe; o destino sempre fica ali encostadinho de capa de chuva num beco fazendo algum tipo de Psst que normalmente você nem ouve porque está correndo tanto para ou de alguma coisa importante que tentou produzir”. A passagem tem algo a ver com a crítica social de Graça infinita: embora desencorajem, nas reuniões do AA — e acredite, você vai ler um bocado sobre o AA —, o discurso que diz que determinada situação difícil foi responsável por conduzir alguém ao vício, o conceito de meritocracia é demolido pouco a pouco por David Foster Wallace. O trecho também é sobre estar aberto às experiências, consciente e atento, e não perseguindo, como um rato em uma roda ou um cachorro com o próprio rabo, um objetivo qualquer. (∅ • D)
h2
“Os segundos não param de vir, não param”, diz Kate Gompert ao psiquiatra que tenta fazer uma avaliação do seu estado. Gompert não suporta mais estar consciente. Para ela, assim como para outros personagens de Graça infinita, viver é doloroso. Mas há o outro lado da mesma moeda. Se o presente às vezes é desesperador, também pode ser uma espécie de salvação. Hospitalizado, um dos personagens desejava apenas “aguentar entre as batidas do coração; tentar imaginar que tipo de salto impossível seria necessário para viver assim (…) no segundo, no Agora, murando e contido entre batimentos lentos”. Pra ele, o presente imediato é a solução: “Aguentando. Nem um único instante daquilo era insuportável. Olha aqui um segundo bem aqui: ele suportou. O que era inaguentável era a ideia de todos os instantes ali todos enfileiradinhos e se estentando na distância, reluzentes.” Toda a ideia de futuro tem um componente aflitivo — é uma das conclusões que a leitura de Graça infinita pode trazer: “Ele podia só se encolher no espaço entre cada batimento e fazer de cada batida uma muralha e viver ali. Não deixar a cabeça espiar por cima. O que é insuportável é o que a cabeça dele podia fazer com aquilo tudo. O que a cabeça dele podia relatar, espiando por cima e lá longe e relatando. Mas ele podia escolher não ouvir.” A própria marcação de tempo em Graça infinita parece sugerir: é mesmo relativo. (∅ • C)
i1
Graça infinita prova ao leitor que existem armadilhas, boa parte delas inconscientes, na nossa maneira de pensar e encarar a realidade. Também é um livro sobre resistir ao prazer — ao prazer fácil e que pede a repetição em doses exponencialmente maiores. Tudo guarda alguma relação com a necessidade de aprender a fazer escolhas de forma livre e consciente. A pergunta que David Foster Wallace insere na narrativa é fácil de ser percebida: uma vez descoberta uma fonte de prazer, conseguimos usá-la com moderação? “E se nós não conseguirmos resistir a ele, ao prazer, e não conseguirmos escolher viver?”, completa Marathe, quebequense com ideias e valores que soam estranhos aos ouvidos de seu interlocutor norte-americano. (π • C)
i2
O lado B da moral de Graça infinita parece estar contido na frase (bem conhecida) “find what you love and let it kill you”. (Até uma investigação apontar que Kinky Friedman, cantor de música country, é seu verdadeiro autor, a frase costumava ser atribuída ao escritor Charles Bukowski.) É difícil não ouvir a sentença como um ruído de fundo durante a leitura de Graça infinita, o que não parece gratuito ou aleatório. Tem a ver com a possibilidade de fazer escolhas versus a completa ruína e ausência de alternativas, tópico que David Foster Wallace revisita obstinadamente, e de várias formas possíveis, durante a narrativa. No entanto, quando toda a sensatez é deixada de lado, ou quando não há mais uma reserva de forças ou mesmo um bom motivo para manter a sanidade, o conselho não parece tão mau assim. Se nada mais importa — e chegar a esse nível é muito, muito difícil —, find what you love and let it kill you. (π • B)
j1
A mulher trêmula é um livro de não ficção da norte-americana Siri Hustvedt (Companhia das Letras, tradução de Celso Nogueira). Siri o escreve para tentar compreender um episódio dramático — uma espécie de ataque durante uma leitura pública em homenagem ao pai —, e, entre uma conclusão e outra sobre aquilo que a atinge, diz algo verdadeiro a respeito da experiência de leitura de livros do calibre de Graça infinita: “O máximo que conseguimos nos aproximar do acesso à mente de outra pessoa é pela leitura. O texto é a arena mental em que diversos estilos de pensamento, rígidos ou suaves, e as ideias geradas por eles, se tornam mais evidentes. Temos acesso ao narrador interno de um desconhecido. Ler, afinal de contas, é uma forma de viver dentro das palavras alheias. A voz de outro se transforma no meu narrador durante a leitura.” Ter acesso ao narrador interno de David Foster Wallace não é fácil, como você pode imaginar. No mesmo trecho de Siri Hustvedt, no entanto, está contida também a ideia de recompensa: “Todavia, quanto mais cativante for a voz na página, mais eu me distancio da minha. Seduzida, entrego-me às palavras da outra pessoa. Mais ainda, costumo ser atraída por diferentes pontos de vista. Quanto mais estranha, distante, difícil ou hostil for a voz, mais eu me vejo dividida, ocupando duas cabeças ao mesmo tempo. Superar a resistência é um dos prazeres da leitura. Alguns textos são incrivelmente difíceis de ler, e quando uma luz brilha de repente sobre uma passagem obscura, decifrar seu sentido (ou sentir que a entendi) gera felicidade”. O mais interessante é: a voz de David Foster Wallace pode obliterar a consciência do leitor, mas nunca por muito tempo. Sua intenção — aquilo que diz, da forma como diz — é justamente esta. Ir e voltar, como um espectro. (∞ • B)
j2
“Eu tenho saudade de uns programas tão nivelados por baixo que eu conseguia assistir e saber o que as pessoas iam dizer antes delas dizerem”, confessa Steeply, uma espécie de agente secreto. “Emoções de domínio, controle e superioridade. E prazer”, analisa seu interlocutor, o quebequense Marathe. O diálogo traz à tona um ponto importante a respeito de Graça infinita. A narrativa de David Foster Wallace é tão caótica e fragmentada que você não tem a menor ideia do que vai acontecer em seguida. Nada ali é esperado. Você não tem controle sobre coisa alguma. Graça infinita se ajusta bem ao que Maurice Merleau-Ponty quis dizer quando mencionou “essa máquina infernal que é o livro”. (∞ • a1)
B
Além de “Isto é água”, texto que dialoga diretamente com a verve de Graça infinita, outros ensaios de Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo se aproximam de questões abordadas no romance. Um deles é “Federer como experiência religiosa”, uma investigação do desempenho do tenista em quadra. David Foster Wallace lembra que a beleza cinética observada num esporte de alto nível guarda alguma relação com “a reconciliação do ser humano com o fato de possuir um corpo”. Graça infinita trata disso, e não apenas nas passagens sobre o tênis. Além da dicotomia do corpo vidente/visível, ponto importante do livro, a ideia de mortalidade — mesmo nas cenas mais leves — nunca abandona inteiramente a narrativa. Como este trecho do ensaio deixa claro: “Tem muita coisa ruim no fato de termos um corpo. Caso não seja óbvio a ponto de prescindir de exemplos, podemos mencionar assim por alto dores, desconfortos, náusea, envelhecimento, gravidade, sepse, desajeitamento, doenças, limites — toda e qualquer fissura entre nossas vontades físicas e nossas capacidades reais. Alguém duvida de que precisamos de ajuda para nos reconciliarmos? É o corpo que morre, afinal.” O esporte de alto nível seria, portanto, uma oportunidade de reconciliação. Por isso a insistência nas cenas de partidas e nas reflexões sobre o tênis. Graça infinita tem mais de mil páginas, mas nada na narrativa me parece gratuito. (j1 • i2)
C
Graça infinita faz lembrar alguns dos versos do poema Altazór de Vicente Huidobro: “Cai/ Cai eternamente/ Cai no fundo do infinito/ Cai no fundo do tempo/ Cai no fundo de ti mesmo/ Cai no mais baixo que se pode cair”. Se não quiser cair, não comece. (E que fique claro: isso não significa que David Foster Wallace proponha às claras uma espécie de cruzada pelo autoconhecimento. O que torna a coisa toda ainda mais assustadora.) (h2 • i1)
D
A verdade pode ser óbvia e pode ser brega (e dizer que pode ser brega é o mesmo que dizer que pode ser sentimental). O tema tem relação com as platitudes dos programas de desintoxicação de doze passos, mas também com o que com o que se chamou de “sinceridade anticool” do garoto Mario Incandenza — um dos únicos personagens de Graça infinita a sentir e demonstrar um afeto genuíno e desinteressado. Seu irmão Hal, embora admire Mario, não consegue ser como ele. Mas Hal é sensível; ele sabe que a “transcendência descolada do sentimentalismo é na verdade algum tipo de medo de ser realmente humano, já que ser realmente humano (…) é provavelmente ser inevitavelmente sentimental, simplista, pró-brega e patético de modo geral, é ser de alguma maneira básica e interior para sempre infantil”. Na esteira do que o livro discute — dito de maneira simplificada, a interação entre forma e conteúdo —, as reflexões de Hal e Mario sobre entretenimento indicam que obras que mascaram o sentimentalismo ocultam algo da nossa humanidade. O próprio enredo de Graça infinita deixa isso claro. O apuro de David Foster Wallace no trato com a linguagem não oculta, e não pretende ocultar, o sentimentalismo de algumas passagens. O pensamento de Mario, que adora o programa de rádio comandado pela curiosa Joelle van Dyne, a.k.a. Madame Psicose, não só vai pelo mesmo caminho que o de Hal como é ainda mais aberto: “Mario tinha se apaixonado pelos primeiros programas de Madame Psicose porque sentia que estava ouvindo uma pessoa triste ler em voz alta umas cartas amareladas que tinha tirado de uma caixa de sapatos numa tarde chuvosa, umas coisas de corações partidos e de mortes de gente de que você gostava e de dor americana, umas coisas de verdade. É cada vez mais difícil achar formas válidas de arte que sejam sobre coisas que são de verdade assim desse jeito. Quanto mais velho Mario fica, mais confuso fica sobre o fato de que todo mundo na ATE [Academia de Tênis Enfield] acima da idade mais ou menos de um Kent Blott [que tem dez anos] acha incômodas as coisas que são de verdade de verdade e fica constrangido. Parece que tem alguma regra que as coisas de verdade só podem ser mencionadas se todo mundo revira os olhinhos e ri de um jeito que não é feliz.” (g2 • h1)
E
Graça infinita também tangencia a incomunicabilidade e a solidão. Muitos dos personagens que anseiam por uma conexão genuína falham em algum ponto. No fundo, parece dizer David Foster Wallace, o simples desejo de estabelecer um vínculo com outro ser humano não é o bastante — é preciso que a coisa toda seja uma via de mão dupla (leia este texto de DP). É necessário assumir, ou pressupor, que a outra parte está sendo sincera (atenção para quantos personagens fingem fingir em Graça infinita). No núcleo dos frequentadores do AA, a Identificação (com letra maiúscula) e Empatia (idem) costumam vir à tona na plateia quando um orador conta sua história de vício e decadência nas reuniões. Por algum motivo, a comunicação no AA parece mais honesta e aberta, exceto quando o orador em questão tenta enxergar algum humor na própria história. Como soldados numa guerra, ex-dependentes compartilham vivências difíceis — de modo que o reconhecimento parece natural. Do lado oposto da linha da sinceridade, a figura mais dissimulada é Avril Incandenza, uma notória manipuladora — Avril manipula com tanta habilidade que ninguém consegue dizer se realmente há algo errado com ela, e, se há, o que é. (Atenção para a semelhança entre Avril e a mãe de “Suicídio como uma espécie de presente”, um dos contos mais arrepiantes da coletânea Breves entrevistas com homens hediondos.) (f2 • g1)
O meu corpo e eu éramos uma coisa só.
Fantástica resenha, Camila.
Preciso de coragem para encarar a leitura do livro.
Obrigada
Beijos
Ainda não terminei o livro, portanto, também não li toda a crítica. Mas já quero uma versão em ebook pra colocar no tablet e poder ler logo que finalizar o livro, e consultar depois e depois…
Um dodecaedro. Sério Camila? Tava tentando adiar essa aquisição, o que 1/3 da resenha tornou impossível. És um tanto perturbada, espero que saibas.
Valeu, Freud!
Antes perder a serenidade da alma a manter-se inalterada e quieta.
Ainda não li toda a resenha, e muito menos o livro, mas achei bastante interessante a ideia de análise poliédrica. Hoje também me deparei por acaso com outra pessoa que tentou fazer sentido com todo o livro, mas usando cores — http://hyperallergic.com/178866/reading-david-foster-wallace-for-the-colors/. Espero algum dia ler todo o livro, e toda a resenha, pra fazer algum comentário mais útil.
errata: em g1, o nome do filme é ‘graça’, não ‘garça’ rs
Tem razão. Erro de digitação corrigido. Obrigada.
Brilhante, Camila. Já queria ler o livro e fiquei ainda com mais vontade…
Desculpa perguntar, mas seu blog é parceiro da Companhia das Letras?
É sim, Mariela. 🙂
Agora fo-deu!! (desculpaê)
Se eu era uma simples especuladora dos posts no Posfácio (do Verão Infinito), apenas por curiosidade cheguei na tua giga e criteriosa análise.
Fui lendo, assim, como quem não quer nada, me sentindo blindada.. afinal, é claro que não leria um livro desse calibre tendo tantos outros na minha lista (TBR)..
Já em 1/3 da tua resenha fui convencida. Vou encarara.
E quer saber? Tô com medinho! ai ai ai
Oi, Camila,
Li um pouco da sua crítica. Estou lendo o livro tal qual você o fez, um pouco no papel e um pouco no e-book; no entanto, sem a sua ideia genial de fazer um poliedro.
Estou gostando muito.
Quando terminar, tenho o carnaval pela frente, o que é ótimo, leio sua crítica e te falo.
Beijo
Que ideia genial de estruturar o texto dessa forma.
Deve ter dado um trabalhão!
Camila,
Entendo seu comentário como um dos mais felizes convites (até agora veiculados em língua portuguesa) à leitura do “tijolo de um quilo e meio”. Você ilustrou a ideia de leitura atenta. Fiquei contente (sem surpresa) por não ter encontrado, no seu desenvolvimento, comparações com outras obras, de outros tempos (ou de sempre?), igualmente geniais. Aceitável a ideia de que a cada bom leitor, na medida de sua capacidade de leitura, Foster Wallace reserva algo impressionante.
Obrigado!
54Q.
P.S.: No finalzinho de “a2”, em “De diferentes maneiras […]”, um “que”…
Camila, acompanho assiduamente suas postagens e não raro me surpreendo com sua análise.
É um convite impressionante e perigoso, do qual nos sentimos atraídos à literatura de Foster Wallace.
Eu tinha recém passado da metade do livro quando vc publicou essa resenha, li e pensei “wow, foda, mas depois que terminar o livro vou ler de novo”.
Daí terminei o livro na semana passada, mas pensei “não, pera, deixa eu tentar escrever sobre o livro aqui e daí eu leio a resenha da Camila de novo”.
Daí agora eu ~terminei~ o meu texto e vim ler de novo e: PQP VC!
O que não tinha sacado da resenha antes fez tanto, mas tanto, mas tanto sentido agora. <3 E tá tudo tão explicadinho e bem amarrado e sei lá, faz jus ao livro. Se pá futuras edições deveriam vir com ele no final pra dar aquela arrematada na leitura. 😛
<3 Own!
Quando sai tua resenha?
Ai, não sei ainda, quando não sentir muita vergonha dela e conseguir diminuir algumas páginas hahahahahah >.<
Muito legal sua resenha! Linda estrutura,e ponto muito importantes.
Gostaria de colocar um ponto que pra mim é muito forte no livro.
Muitos críticos dizem que IJ trata de uma mensagem pré-moderna em um formato pós-moderno. Por trás da obsessão dos personagens há lições morais pertinentes ao mundo moderno.
Vejo de forma mais pessimista, uma vez que todos os personagens são contraditórios e nenhum se mostra como exemplo moral. Até mesmo Mário Incandenza, tão aclamado por mostrar o melhor lado das pessoas com quem está, é um alienado, seu corpo uma metáfora (alien); Mário filma tudo o tempo todo e em uma interação (acho que com LaMont Chu, não me lembro) não consegue agir normalmente, sem sair da racionalidade “façamos um filme”.
Outro bom exemplo é James Inc. Sua lembrança sobre como passou a se interessar por anulação mostra-lhe como uma pessoa sem sentimentos ou afeição, com uma carapaça de lógica-matemática monopolizando sua identidade. Eu li isso para depois ler sobre o porquê de fazer o filme (i.e. para comunicar-se com seu filho supostamente mudo) e pensei: “esse cara é um babaca… Espera. Ele é um babaca? É um doido? É alguma coisa? ”
Os personagens são continuamente contraditórios, não há características sólidas em basicamente nenhum deles. Isso é bem frustrante, e talvez por isso que DFW disse que “queria escrever um livro sobre tristeza”.
A fato do livro ser uma abordagem cômica sobre a tristeza — i.e. nós leitores nos divertirmos com o conteúdo — talvez reforce sua verossimilhança!
Abração.
PS: escrevi algumas coisas sobre o livro, vou deixar os links aqui. Estão em inglês, porque li a versão original.
Desculpe, não é por propaganda, é porque li o livro e fiquei com tanta vontade de conversar sobre ele com alguém… Não quer conversar comigo por Skype? 🙂
http://brunolaze.blogspot.com.br/2015/03/2-points-of-infinite-jest.html
http://brunolaze.blogspot.com.br/2015/01/infinite-jests-reference-to-hp-lovecraft.html
Há vários anos esbarro em textos e teses sobre Infinite Jest na internet, mas a despeito de todo o falatório nunca me interessei. Aí li esse texto e tive que comprar. Pode pedir tua comissão pra Cia das Letras.
Espero que goste do livro, Douglas! 🙂
Que resenha! A estrutura dessa resenha me lembrou O Jogo da Amarelinha do Cortázar.
Também reli sua resenha depois de terminar o livro e não há mais que dizer senão que está genial. Cumprimentos.
Não, para tudo!!! Aliás, eu é que vou parar! Desde que tencionei escrever minhas parcas impressões sobre os livros que leio, achava que uma resenha com algumas dezenas de palavras estava bem servida, mas, de tudo que se lê por aí em termos de resenhas de livros, nunca tinha visto nada igual! Esfacelar num dodecaedro — e de forma extremamente organizada — é um feito para poucos! Parabéns pela genialidade! Acredito que devo parar, pois sei que nunca chegarei a um nível tão alto quanto o seu.
Acabei de terminar o livro. Essa resenha é tão espetacular quanto o próprio livro. Meus parabéns mais sinceros e muito, muito obrigado!
Obrigada, Maurício! 🙂