Só roubei livros de filosofia. Montei, na minha mansarda da rue Alexandre-Cabanel, uma verdadeira biblioteca de obras bastante árduas, às vezes com vários volumes […]. Devo confessar que eu era um ladrão muito hábil, de grande sangue-frio, observador dos lugares, conhecendo perfeitamente todos os cantos e sessões do térreo e do primeiro andar da PUF, capaz de identificar os numerosos seguranças especialmente encarregados pela direção de neutralizar meus pares, a tal ponto a indústria do roubo florescia. Mas eu também tinha espírito de decisão, era apto para agir rápido, enfiar o livro cobiçado na minha pasta ou entre as páginas de um jornal com a mão leve de um prestidigitador napolitano. Cheguei a me acreditar invencível, não duvidava fazer jus ao título de melhor gatuno do Louis-le-Grand. Foi Hegel — Georg Wilhelm Friedrich — minha perdição. Enquanto Ferdinand Alquié ensinava filosofia no K1, Jean Hyppolite era seu homólogo no K2. Colega de Sartre na École Normale Supérieure, era não somente tradutor de Hegel mas tido também como um hegeliano de grande renome, e todos nós esperávamos sedentos o lançamento por muito tempo anunciado, por muito tempo diferido, do seu opus magnum: Gênese e estrutura da fenomenologia do espírito. Por fim, o editor Aubier anunciou a publicação da obra. Fui correndo e fiquei presa de um temor reverencial, a tal ponto era belo, grosso, pesado, a tal ponto me parecia, assim que me pus a percorrer sua primeira página, o único a abrir os acessos, a fornecer as chaves do pensamento fundador do grande alemão. Eu precisava daquele livro, que representava para mim um derradeiro desafio, depois do qual eu cessaria, tinha certeza, de roubar, porque nada o igualaria. Era meu santo Graal. Entendi mais tarde que sua busca era, na verdade, mais importante para mim do que sua leitura, e sua posse mais do que seu conteúdo. Se a leitura tivesse sido primordial, eu teria podido passar horas tranquilas e estudiosas na biblioteca. Mas Georg Wilhelm Friedrich e Jean Hyppolite demandavam riscos. O problema é que levei dias, semanas talvez, para assumi-los e, depois de ter fuçado na PUF, examinando gravemente outros livros para tapear, uma força poderosa e incontrolável detinha meu braço no instante de passar ao ato. Eu tinha medo, não conseguia, adiava o tempo todo, minhas manobras e minha pusilanimidade faziam [com] que eu fosse notado, em vez de me fazer invisível. Não aguentando mais, não suportando minha covardia, incapaz também de renunciar, procedi da pior maneira. Uma tarde, por volta das três, entrei na PUF, subi, fui direto à sessão de filosofia onde sabia que iria encontrar Gênese e estrutura, apoderei-me sem problema do exemplar, enfiei-o na minha pasta, desci, passei sem parar diante das caixas do térreo, abri a porta que dava para a praça da Sorbonne e, ao ar livre, respirei pela primeira vez, acreditando-me por alguns segundos triunfante e livre. Não tinha dado três passos quando uma mão brutal se enfiou no bolso direito do meu casaco, agarrando meu quadril, parando-me no ato. Virei e encarei o agressor, um quadragenário baixote de chapéu mole. “Escute, rapaz”, sussurrou, “você não se esqueceu de pagar um livro, por acaso?” Ele me segurava firme, eu não tinha um tostão e, não podendo alegar nada, incapaz de inventar uma mentira, não tive outra opção senão dizer a verdade. “Não, não esqueci, não tinha dinheiro, roubei, mas tome seu livro, eu o devolvo, dane-se”, disse a ele tirando o livro da pasta e entregando-o com insolência, enquanto ele agarrava ainda mais meu quadril. “Você acha que isso vai ficar assim, meu caro? Estenda os braços”, ele ordenou, exibindo imediatamente um par de algemas, passando-me com uma destreza fulminante uma argola em torno do punho. Eu supliquei: “Não, por favor, não passe as algemas aqui, todo mundo me conhece, não vou fugir”. Ele olhou para mim, me mediu, me disse: “Bom, estou vendo que você não é um ladrão”, tirou a argola, agarrou meu braço pelo bíceps e, colado a mim, me fez atravessar a praça da Sorbonne até a rua do mesmo nome que descemos em direção à rue des Écoles. De longe, a coisa poderia passar por uma atitude paterna, mas nenhum pai aperta com tanta força a carne do seu filho. Ele sabia aonde íamos, eu não. Ele começou então, com sua voz suave, a me explicar como eu era incompetente e a me dar uma verdadeira aula de roubo de livraria: na verdade, ele me ensinava com o maior orgulho tudo o que eu já sabia, tudo o que eu praticara à perfeição em meus furtos anteriores antes de ser paralisado, imobilizado, pela maléfica nitescência do Graal hegeliano. Ele me anunciou à queima-roupa: “Depois da delegacia, vamos à sua casa, preciso verificar se você não roubou outros”. Parei na hora, como um burrico que se recusa a andar, subitamente me dando conta de que Alquié e sua loura esposa vinham jantar em casa naquela noite. Disse a ele: “O senhor viu a que ponto sou desastrado, pegou-me na minha primeira tentativa, não roubei mais nenhum”. “Acredito, mas iremos lá assim mesmo.” Joguei então minha última cartada: “Vamos já, então, mais tarde minha mãe já terá voltado e saber que roubei vai matá-la, ela sofreu muito com a guerra”. Ele me beliscou de arrancar sangue, obrigou-me a andar, arrastando-me para a rue Saint-Jacques e o boulevard Saint-Germain. “Não, iremos depois”, ele replicou. “Tem de ser já”, insisti, “prefiro lhe dizer a verdade: roubei outros dois, mas é um livro em dois volumes, L’Action, de Blondel, é como se houvesse roubado só um.” Durante essa troca de palavras tínhamos chegado à delegacia da rue Dante, cuja porta ele abriu impetuosamente, e depois projetou-me lá dentro um um empurrão violento. A sua voz do dr. Jekyll transformou-se de repente num urro selvagem de mr. Hyde, o qual, diante dos seus colegas da Polícia Nacional, puxou à força meus braços para trás, e jogou em cima de um balcão Gênese e estrutura vociferando: “Olhem só este canalha, mais um. Peguei-o”. Um tira grandalhão se aproximou, encarou-me, arredondou ostensivamente com os lábios um escarro que cuspiu no meu rosto ao mesmo tempo que me estonteava com uma bolacha em vaivém, aplicada com a palma da mão.
Durante um tempo que me pareceu infinito, esperei, sentado num banco, que um funcionário da polícia judiciária se dignasse a me interrogar. Mr. Hyde, que era um detetive particular pago pela PUF, parecia ter se acalmado, os tiras que estavam ali à minha chegada haviam desaparecido, substituídos por outros em idas e vindas ininterruptas. Um dos novos tiras pegou Gênese e estrutura, tentou ler a primeira página — perfeitamente incompreensível para um profano —, passou à segunda, à terceira, folheando cada vez mais nervosamente e cada vez mais rápido o livro inteiro, depositando-o de volta com um ar de nojo no balcão e, plantando-se diante de mim, me deu uma bofetada por sua vez acompanhada deste comentário sacrifical: “Olhe aqui, seu canalha, eu preferiria não ler a vida toda a roubar um livro”. Chegou enfim o momento do interrogatório, rapidamente realizado, porque estava entardecendo e todos tinham pressa de acabar logo com aquilo. Recitei minhas declarações, e o policial me disse: “Leve de volta amanhã à PUF os outros livros roubados e agradeça à Casa, que não vai processá-lo. Você tem sorte”. Eu nem podia acreditar! Assinei meu depoimento, Mr. Hyde pegou com uma mão Gênese e estrutura, meu braço com a outra, saímos da delegacia para a praça da Sorbonne e o dr. Jekyll reapareceu, todo encantos e todo sorrisos. Eu disse a ele: “Vamos logo à minha casa, minha mãe talvez ainda não tenha chegado”. “Não, não, vou confiar em você. Amanhã você traz os dois volumes de L’Action.” Mas a série de metamorfoses não terminara: mal atravessamos a porta da livraria, lotada àquela hora, Hyde ressuscitou, agarrou-me pela gola, para que todos, clientes e vendedores o ouvissem: “Mais um, peguei ele!”. Gesticulava e saltitava em torno de mim parecendo o miliciano de Brioude, fez-me subir as escadas aos trancos, rosnou no primeiro andar diante dos filósofos assombrados, empurrou-me enfim dentro de uma saleta ocupada pelo gerente e uma secretária gorduchinha. Ela olhou com desprezo para meu rosto marcado pelas cusparadas e ainda vermelho dos sopapos recebidos, o gerente conferiu imediatamente o preço do livro, erguei os ombros com um ar ao mesmo tempo agastado e fatalista, eu balbuciei o roubo do Blondel, que prometi devolver no dia seguinte, Jekyll-Hyde me cobrou: “Agradeça à Casa”. Assim fiz.
Lavado com água austral, purificado, curado para sempre, passei em companhia de Alquié, de sua mulher, de Monny, de minha mãe, uma agradável noitada amical e filosófica. Não deixei de me humilhar uma segunda vez devolvendo L’Action, mas esqueci nos meus recônditos essa história odiosa sem imaginar que ela ressurgiria alguns meses depois. Certa tarde, ao voltar do Louis-le-Grand, minha mãe me recebeu com estas palavras: “Escute aqui, você não está escondendo nada?”. Respondi que “não”, depois, ante seu pesado olhar inquisidor: “Mamãe, eu te escondo tanta coisa que é como se eu te contasse tudo”. “E isto?”, ela replicou brandindo um papel que pôs diante dos meus olhos e que li, incrédulo: era uma intimação a comparecer ao tribunal correcional por “roubo em prejuízo da livraria Les Press universitaires de France”. Ao contrário de tudo o que tinham me garantido, a “Casa” tinha dado queixa. Contei à minha mãe o detalhe das circunstâncias, suplicando que não revelasse nada a Monny. Ela me respondeu que era grave, que ela não poderia lhe esconder e que a primeira coisa a fazer era arranjar um advogado. Retorqui que não queria, que era capaz de me defender sozinho, que roubar livros de filosofia era diferente de arrancar a bolsa de uma senhora idosa ou cometer um assalto. Monny, a quem ela contou a história assim que chegou, concordou com ela e me taxou de inconsciente. Morávamos no 11, havia um advogado no 11 bis. Era tarde, mas Monny me levou até lá imediatamente. O advogado nos recebeu, Monny lhe expôs de que doentia paixão filosófica eu era presa, citou meu mestre, seu amigo Ferdinand Alquié, e Jean Hyppolite, autor da obra furtada, que morava — eu sabia porque já tinha me convidado à sua casa — cinquenta metros adiante, no número 7 da rue Alexandre-Cabanel. O advogado, cujo nome esqueci, sugeriu que as declarações desses dois filósofos seriam, para o processo por vir, de uma grande importância. Uma condenação acarretaria ipso facto a abertura de uma ficha, que me vedaria o acesso aos concursos. Pedi um encontro a Hippolyte, que o concedeu de bom grado, e devo dizer que nunca teria imaginado que tal cumplicidade pudesse se estabelecer entre um roubado e seu ladrão. “Você gosta a tal ponto do meu livro?”, foram suas primeiras palavras. “Ele merece”, respondi. “Merece ser comprado, o que eu devia ter feito, para lê-lo.” E provei a seu autor que o tinha de fato lido. Jean Hippolyte exultava, transudava por todos os poros uma alegria transcendental, empertigando-se de orgulho. Nunca alguém lhe dera um presente assim: o roubo, por um aluno do preparatório, de Gênese e estrutura era o reconhecimento supremo, aquilo valia mais que ser best-seller.
Companhia das Letras, 2011. Tradução de Eduardo Brandão e Dorothée de Bruchard [os erros de ortografia e a oscilação de maiúsculas e minúsculas estão no texto original, que não foi modificado]