Lembro que, certa noite, ele me chamou à soleira da porta para me contar sobre o céu: Ursa Maior, Ursa Menor, ali uma panela, lá uma raposa levando um ganso na boca, em tal lugar um peixe voador, em tal outro uma pomba. E então me ensinou o tempo e a duração, a eternidade e o infinito, ao explicar que algumas estrelas, muito distantes, já tinham enviado bilhões de anos atrás a luz que só agora chegava até nós, sendo que elas próprias já deviam ter morrido há milhões de anos.
Descobrir assim a imensidão do tempo e a pequeneza de nossas vidas é aprender o sublime, é descobri-lo, é tender para ele e nele querer ocupar um lugar. Meu pai me fornecia assim, simplesmente, um exercício espiritual de primeira qualidade para me ajudar a encontrar meu lugar no cosmos, no mundo, na natureza e também, portanto, entre os homens. Subir aos céus, a consagrada expressão do catecismo, podia também, portanto, ser entendida de forma pagã, imanente ou, para usar um termo perfeitamente adequado: filosófica. O céu estrelado oferece uma lição de sabedoria a quem sabe olhar para ele: perder-se é nele se encontrar.
A estrela polar cumpria um importante papel nessa lição de sabedoria. Meu pai, que não dava outra lição de moral senão a de viver moralmente, ensinou-me que essa estrela é a primeira a surgir, a última a sumir, que aponta infalivelmente para o norte quaisquer que sejam as circunstâncias, e que basta olhar para ela quando se está perdido para ela nos salvar, mostrando o rumo a seguir. Lição de astronomia, sem dúvida, mas também de filosofia, ou até mais: lição de sabedoria. Saber que precisamos de um ponto de referência existencial para poder levar uma vida digna desse nome — algo que dava ao menino que eu era uma espinha dorsal na qual enrolar seu ser.
Tínhamos, eu e ele, uma história com a estrela polar. Quando eu tinha uns oito, nove anos, num campo em que eu o ajudava a plantar batatas, ele cavava com a enxada buracos regulares e eu punha uma batata dentro, às vezes também ao lado. Ele, curvado ao meio, pernas eretas, avançava em ritmo regular, qual máquina bem ajustada, bem azeitada; já eu arrastava do jeito que dava meu cesto que raspava no chão. Ele se calava; eu falava o tempo todo, ele às vezes me repreendia mansamente por isso. As andorinhas cantavam lá no alto e, depois de muito se esgoelarem, vez ou outra deixavam-se cair do céu pesadamente.
Um avião deixou um rastro no ar; perguntei ao meu pai aonde ele iria se um dia ganhasse de graça um bilhete de avião. Pergunta esquisita numa época em que faltava dinheiro em casa para as coisas mais elementares e em que, filho de um operário agrícola e de uma faxineira, poucas eram as probabilidades sociológicas de eu um dia poder dar corpo a esse desejo — na falta de dar um desejo ao corpo de meu pai, que nunca expressava nenhum. Ele nada tinha, de modo que tudo possuía. Sendo assim, por que cobiçar algo mais? Os presentes de dia dos pais estacavam nessa ascese: um livro? Ele não lia. Um disco? Não escutava música. Um cachecol? Nunca usava. Uma gravata? Já tinha uma. Uma garrafa de vinho ou champanhe? Não bebia. Charutos? Ele então enrolava seus cigarros, única frivolidade explicitada com Gitanes de papel de milho no domingo, e uma cigarrilha nos dias de festa. Não havia dinheiro para restaurante, cinema, teatro, férias jamais, quando tirava era para ir trabalhar em outra fazenda.
Meu pai não eludiu minha pergunta, até respondeu: “Para o Polo Norte”. Não lembro qual foi minha reação. Espanto, talvez, e seguramente um “por quê?” a que ele não teria respondido — senão eu lembraria. Anos mais tarde, em 1981 — ele acabava de completar sessenta anos, o médico diagnosticara uma angina do peito e prescrevera a implantação de duas pontes coronárias —, no quarto de hospital onde, ainda e sempre, aos vinte e dois anos, eu ignorava a sábia arte de calar, conversei com ele. Mencionei a antiga pergunta, quis saber se ele ainda lembrava a resposta que me dera; ele confirmou: “Sim, claro: o Polo Norte…”. Perguntei por que, evidentemente — e obtive uma resposta do gênero: “Não sei… Por nada…”.
Vinte anos mais tarde, feliz por meu pai ter chegado àquela idade, e para festejar seus oitenta anos, convidei-o para uma viagem ao Polo Norte. Para nos acercarmos de nossa estrela polar. Ele, que nunca saíra de sua aldeia, nunca andara de avião, nunca se separara de minha mãe por mais que um dia, aceitou. E fomos. Vimos o Polo Norte, vimos ursos brancos, icebergs, inuítes, geologias lunares, águas de tudo que é cor, de turquesa a ultramarino, de cinza a preto, de verde a violeta, comemos foca crua, sujamos a boca de sangue fresco, devoramos fígado também cru, partimos ao meio o olho do animal encalhado para tragar o cristalino, comemos salmão defumado, seco, pendurado ao ar livre, mascamos pele de orca, sorrimos inúmeras vezes para inuítes desdentados em volta de um fogo a lenha, vimos um sopro de cetáceo na superfície das águas, mas não a baleia, pássaros passaram rente a nós em seus longos voos planados, gritaram acima de nós. […]
Decepcionado de início, meu pai não viu o que talvez esperasse ver: os iglus de gelo tinham dado lugar a casas de madeira coroadas por antenas parabólicas; os caiaques e seus remadores haviam sido trocados por barcos a motor; os cães de trenó, por pesados 4×4 e quadriciclos estardalhantes; o aquecimento global derretera o gelo naquele verão e expusera a terra poeirenta que redemoinhava nas incessantes idas e vindas dos veículos motorizados; no lugar dos inuítes mitológicos estavam inuítes empanturrados de açúcar, obesos, desdentados, bebedores de Coca-Cola, fumantes, mendigando o haxixe trazido na bagagem pelos visitantes — não sendo essa a minha substância, eu só trouxera uma garrafa de vinho para comemorar o aniversário; trocados por evangelistas comedores de hóstias, haviam desaparecido os xamãs habituados aos espíritos dos animais, das pedras e dos mortos.
O Norte perdera o norte. Cheguei a lamentar ter planejado essa viagem e, contemplando um iceberg ao longe, no alto de um pequeno monte, frente ao mar azul quase negro, recordei a frase de Schopenhauer: “O desejo nunca cumpre suas promessas”. Meu pai tinha, enfim, respondido à minha pergunta: Por quê? Quando moço, no quarto de operário agrícola que ele dividia com os animais, e em que a água, no inverno, congelava na bacia, ele lera Paul-Émile Victor. E, para ele, cujo sobrenome escandinavo atesta dez séculos de presença em terras normandas com vikings na árvore genealógica, posso de fato imaginar quanto exotismo não havia naquela terra hiperbórea, fonte das fontes, genealogia das genealogias.
Mas meu pai, se de início ficou decepcionado por não ver o que tinha vindo ver, acabou vendo o que não esperava: num dia em que o mau tempo e a presença de um urso nos impediam de sair da cabana, o inuíte que nos servia de guia, Atata (papai, em inuktitut), se pôs a nos contar a mitologia de seu povo. Numa sacola de pele de foca, introduziu um fino cordão feito com os nervos do animal e, tentando juntar ao acaso os ossos do mamífero que tirava lá de dentro, dispunha-os sobre a mesa e contava as histórias. Mesclava mitos com fatos de sua vida, da vida de sua aldeia. Falava na sua própria língua, dois marujos que trabalhavam com ele traduziam em inglês, nós traduzimos em francês.
Atata, que tinha o rosto marcado de frio e de luz, liso, achatado, só horizontalmente riscado pelos olhos, Atata, o velho, o ancião da aldeia, Atata, meio xamã, meio pastor, Atata, patrão de seus dois marujos, Atata proferiu umas palavras meio trêmulas, parou de falar com um soluço na voz, ficou em silêncio, um silêncio que durou uma eternidade, e então bateu com o punho na mesa antes de enxugar as lágrimas. O rude personagem, septuagenário, que tivera para com meu pai, mais idoso que ele, todas as deferências devidas aos antigos, e que certa noite, numa ilha, em meio às pedras, junto a uma fogueira, trouxe do nada uma cadeira para que ele se sentasse, Atata petrificou sua plateia. Os tradutores do inuktitut para o inglês se calaram. Um longo silêncio de morte tomou conta da casinha de madeira, que um urso poderia desmantelar com uma patada só.
O inuíte desdentado deu a explicação: o ancião estava contando uma história terrível. Durante a Guerra Fria, quando os Estados Unidos e União Soviética consideravam a possibilidade de uma guerra nuclear, o Polo Norte representava uma zona estratégica. […]
Nessa época, os norte-americanos deportaram as tribos inuítes a fim de poderem ocupar a região mais ao norte: famílias, mulheres e crianças, anciões seus parcos instrumentos de caça e de pesca, seus caiaques, seus cães e trenós. Não levaram em conta o fato de que, à medida que se avança em direção ao polo, o gelo se torna mais espesso, sendo impossível, portanto, perfurá-lo para pescar. Os inuítes rumaram então para o sul para não morrerem de fome, ou morrerem simplesmente, já que a foca é que lhes fornece quase tudo: para comer, morar (os intestinos servem de vidro corta-vento), vestir (a pele dos bichos é cosida com seus nervos), se deslocar (a pele do animal reveste o caiaque).
Quando os norte-americanos perceberam esse movimento dos inuítes na direção contrária, deportaram-nos novamente para o norte. Outra vez as famílias, mulheres e crianças, anciões, outra vez os parcos instrumentos de caça e de pesca, outra vez os caiaques, os cães e os trenós. Mas, para impedir que esse povo retornasse aos locais de caça e pesca mais ao sul, o exército norte-americano matou e empalou os cães. Ao relatar o assassinato de seus cães é que, meio século mais tarde, Atata chorava.
Meu pai, que não viu o que tinha vindo ver, acabou vendo o que não tinha vindo ver: o relato do fim de um povo, de uma civilização, de um mundo. Atata estava para o mar e para os cães como meu pai estava para a terra e para os cavalos. Esses dois homens nunca tinham sido apartados da natureza, da qual sabiam que eram parte, e sua inteira sabedoria provinha dessa evidência. Atata pranteava seus cães empalados do mesmo modo como vi meu pai, um dia, emocionado até as lágrimas, contar que um cavalo de que gostava (“Coquette”, talvez, ele falava muito nos seus cavalos, e só me vem esse nome) e com o qual arava a terra caíra morto na lavoura, fulminado por um ataque cardíaco.
Aquele momento uniu Atata e meu pai. A partir daí, e até o final da viagem, o inuíte e o normando sorriam um para o outro, se olhavam, conversavam sem se entender verbalmente, mas sabendo que a verdadeira compreensão não está nem aí para as palavras, para o verbo e para os discursos. O mundo do hiperbóreo e o do viking eram um mesmo e único mundo. Eu testemunhava aquela osmose, aquela simbiose entre dois homens que, sábios, sabiam que eram uma pequena parte do grande cosmos, um saber que, para quem o sabe, conduz ao sublime. Essa lição me foi dada, como as outras, sem alarde.
Michel Onfray em Cosmos. Tradução de Dorothée de Bruchard. Martins Fontes.