Ele sorriu, e durante um momento ficamos os dois observando a família do outro barco, do outro lado da água cintilante. Falei que, quando meus filhos tinham a mesma idade daqueles meninos saltitantes, eram tão grudados que teria sido difícil desenredar suas duas naturezas distintas. Costumavam brincar juntos sem parar desde o instante em que abriam os olhos de manhã até aquele em que tornavam a fechá-los. Suas brincadeiras eram uma espécie de transe compartilhado no qual eles criavam mundos imaginários inteiros, e viviam entretidos em jogos e projetos cujo planejamento e execução eram tão reais para eles quanto invisíveis para todos os outros: às vezes eu mudava de lugar ou jogava fora algum item aparentemente sem importância, e eles vinham me dizer que aquilo era um objeto sagrado no faz de conta em andamento, uma narrativa que parecia correr feito um rio mágico pela nossa casa, inexaurível, e da qual eles podiam sair e reingressar sempre que quisessem, cruzando esse limiar que ninguém mais conseguia ver até adentrar um outro elemento. Então, um belo dia, o rio secou: seu mundo imaginário compartilhado deixou de existir, e o motivo foi que um deles — nem sequer me lembro qual — deixou de acreditar na sua existência. Em outras palavras, não foi culpa de ninguém; mesmo assim, porém, compreendi o quanto de belo em suas vidas era resultado de uma visão comum de coisas que, a rigor, não se podia dizer que existissem.
Imagino que essa seja uma das definições do amor, falei, a crença em algo que só vocês dois conseguem ver, e nesse caso ela se revelou uma base instável para a vida. Sem sua história compartilhada, os dois meninos começaram a brigar, e enquanto a sua brincadeira os havia afastado do mundo, às vezes os tornando inacessíveis durante horas a fio, suas discussões os traziam constantemente de volta para ele. Eles recorriam a mim, ou então ao pai, em busca de intervenção e justiça. Começaram a dar maior importância aos fatos, ao que tinha sido feito e dito, e a montar uma argumentação a seu favor e contra o outro. Era difícil não ver essa transposição do amor para os fatos como um espelho de outras coisas que estavam acontecendo em nossa casa na época, falei. O mais impressionante foi o potencial absolutamente negativo de sua antiga intimidade: era como se tudo que antes era interno houvesse sido trazido para o lado de fora, pedacinho por pedacinho, feito peças de mobília retiradas de uma casa e postas na calçada. Parecia haver muita coisa, pois o que antes era invisível estava agora visível: o que antes fora útil era agora obsoleto. Seu antagonismo tinha a medida exata da sua antiga harmonia, mas enquanto a harmonia havia sido atemporal, sem peso, o antagonismo ocupava espaço e tempo. O intangível se tornava sólido, o visionário ganhava corpo, o privado virava público; quando a paz se torna guerra, quando o amor vira ódio, algo nasce para o mundo, uma força de pura mortalidade. Se o amor é aquilo que nos torna imortais, como dizem, o ódio é o contrário. E o mais impressionante é quantos detalhes ele atrai para si, de modo que nada permanece intocado. Eles estavam lutando para se libertar um do outro, mas apesar disso a última coisa que conseguiam fazer era deixar o outro em paz. Brigavam por tudo, disputavam a posse dos objetos mais insignificantes, ficavam enfurecidos com os mais ínfimas nuances do discurso, e quando finalmente ficavam enlouquecidos pelos detalhes partiam para a violência física, batiam um no outro e se arranhavam; o que naturalmente os levava de volta à loucura dos detalhes outra vez, pois a violência física acarreta os demorados processos da justiça e da lei. A história de quem tinha feito o que com quem precisava ser contada, e as questões de culpa e punição precisavam ser estabelecidas, embora isso tampouco jamais os deixasse satisfeitos; na verdade piorava mais ainda as coisas, pois parecia prometer uma solução que nunca chegava. Quanto mais os pormenores eram especificados, maior e mais real se tornava sua briga. Cada um deles desejava mais do que tudo ser declarado certo, e o outro errado, mas era impossível atribuir a culpa de modo completo a qualquer um deles. E acabei me dando conta, falei, de que aquilo jamais poderia ser resolvido, não enquanto o objetivo fosse estabelecer a verdade, pois não existia mais uma única verdade, a questão era essa. Não existia mais uma visão comum, ou sequer uma realidade comum. Cada um deles agora via as coisas somente da sua própria perspectiva; só havia um ponto de vista.
Esboço
Rachel Cusk
Editora Todavia
Tradução de Fernanda Abreu