O essencial é comprar muitos livros que não são lidos na hora. Em seguida, depois de um ano, ou de dois anos, ou de cinco, dez, vinte, trinta, quarenta, poderá chegar o momento em que se pensará ter necessidade exatamente daquele livro — e quem sabe ele poderá ser encontrada numa prateleira pouco frequentada da própria biblioteca. Nesse meio-tempo, pode ser que o livro tenha se tornado indisponível, e difícil de se achar inclusive em um antiquário, porque de pouco valor comercial (alguns paperbacks parecem capazes de se dissolver rapidamente no ar) ou mesmo porque se tornou uma raridade e vale muito mais. O importante é que agora possa ser lido na hora. Sem outras pesquisas, sem a tentativa de achá-lo na biblioteca. Operações laboriosas, que esmagam a inspiração do momento.
Estranha sensação, quando aquele livro será aberto. De um lado, a suspeita de ter antecipado, sem sabê-lo, sua própria vida, como se um diabo sábio e malicioso tivesse pensado: “Um dia você vai trabalhar com os Bogomilos, mesmo se por agora não sabe quase nada sobre eles”. Do outro lado, uma frustração, como se não fôssemos capazes de reconhecer o que nos diz respeito senão com grande atraso. Depois nos damos conta de que aquela dupla sensação se aplica também a muitos outros momentos da nossa vida. Valéry escreveu uma vez que “somos feitos de dois momentos, e como do atraso de uma ‘coisa’ sobre si mesma”.
Hoje a tecnologia diminuiu em muito os tempos de espera e de busca por um livro. É um dos vários exemplos de ilusória onipotência fomentados pelas máquinas. Mas isso nada tira do fascínio de ter nas mãos — na hora — um livro cuja necessidade não se sabia até um momento antes. O gesto decisivo permanece o de ter comprado algo, um dia, pensando que seu uso era somente hipotético.
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Muito raro é caso dos livros que li e que ficaram tais quais, sem nenhum sinal de lápis. Não deixar no livro rastros de leitura é uma prova de indiferença — ou mesmo de estupor.
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Sempre desconfiei daqueles que querem conservar os livros intactos, sem nenhum sinal de uso. São maus leitores. Qualquer leitura eixa rastros, mesmo que nenhuma marca permaneça no papel. Um olho exercitado sabe logo distinguir se um exemplar foi lido ou não.
Quanto às marcas nos livros, tudo é permitido com a exceção de escrever ou sublinhar a caneta, porque é uma espécie de lesão imedicável do objeto. Mas também essa regra admite — raríssimas — exceções. Tenho diante de meus olhos duas páginas do exemplar de Linguística cartesiana de Chomsky que pertencia a Oliver Sacks. Observo onze linhas sublinhadas a caneta, com uma régua. E as margens em particular estão ocupadas por observações de Sacks, feitas sempre com caneta, mas com duas cores diferentes, preto e vermelho. As palavras em vermelho retomam e corrigem as em preto. E tratam — nada menos — da relação entre “estruturas profundas” e “enunciações”. Em vermelho se lê, como uma explosão, a frase conclusiva: “Eu não penso em enunciações”. Impossível não conceder a Sacks […] essa e muitas outras exceções.
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Em 1911, Fritz Saxl colocou os pés pela primeira vez na biblioteca de Aby Warburg, que era nessa época uma instituição particular num bairro residencial de Hamburgo […]. A primeira impressão foi de um desconcerto singular. Raras bibliografias estavam ao lado de numerosas publicações de astrologia. E o embaraço também dizia respeito ao modo com que a biblioteca era organizada: “Warburg não se cansava nunca de mudar de lugar os livros e depois mudá-los de novo. Cada passo adiante em seu sistema de pensamento, cada nova ideia sobre a inter-relação dos fatos o induzia a reagrupar de outro jeito os livros relacionados”.
Sóbrias palavras que convidam a se resignar, de uma vez por todas: a organização de uma biblioteca nunca encontrará — aliás nunca deveria encontrar — uma solução. Simplesmente porque uma biblioteca é um organismo em perene movimento. É um terreno vulcânico onde sempre está acontecendo algo, mesmo que não seja perceptível de fora. “Nessas regiões, qualquer ordem não é nada além de um estado de suspensão sobre o abismo” (Benjamin).
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“O senhor leu todos?”, perguntou a loira senhora finlandesa a meu pai, quando entrou na nossa casa em Roma. À esquerda tinha uma parede com textos jurídicos entre o século XVI e XIX, muitos dos quais in-fólio e em sua maioria em latim. Era a pergunta clássica que muitos pensavam e que agora a franqueza boreal enunciava. Pergunta da suspeitosa ignorância, nunca, porém, tão justificada como diante de livros que por sua natureza não se leem um atrás do outro, mas são consultados e compulsados.
Quanto a mim, eu passava ao lado desses volumes todos os dias da minha infância e adolescência. Por isso, era obrigado, pelo menos visualmente, a achá-los familiares, mesmo se fossem totalmente desconhecidos. Entretanto, sei que devo muitíssimo a eles, porque desses livros eu não poderia não ter lido as lombadas, com aqueles nomes e aqueles títulos muitas vezes obscuramente entrelaçados.
A senhora finlandesa não tinha somente dado voz à pergunta peculiar de quem não sabe bem o que significa ler, mas tinha também tocado num ponto crucial no que diz respeito a cada in-fólio, formato incompatível com os tempos modernos. Não é imediato imaginar um leitor de hoje que lê um in-fólio, senão nas grandes bibliotecas públicas. Faltam as escrivaninhas certas, os suportes, as altas estantes. A postura de são Jerônimo e o seu gabinete nas pinturas de Antonello de Messina ou de Van Eyck não parecem hoje replicáveis. Assim perde-se também um singular prazer ligado aos in-fólio: a sensação de ler algo que nunca será lido por inteiro.
Donellus, Cuiacius, Albericus de Rosate, Baldus Ubaldus, Azo, Bartolus a Saxoferrato, Matthaeus Afflictis, Fulgosius, Placentinus, Zabarella: nomes que eu não tinha como deixar de ver todos os dias, mesmo enquanto brincava. E que podiam parecer estranhos e hostis, como inevitavelmente aparecem num determinado tempo para qualquer criança as coisas dos adultos. E depois, pouco a pouco, deveriam emanar uma sutil fascinação, pela pura força de seu som, e sempre ligados à sensação de desmedida, benéfica prevalência do desconhecido sobre o conhecido. Sensação sem a qual não se dá sequer o primeiro passo no conhecimento — e permanece intacta até o fim. Sensação que se pode também ter a sorte de sentir caminhando num corredor, em casa, e tomando nota sem querer, com o canto do olho, dos nomes escritos na lombada de algum in-fólio.
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Roberto Calasso
Como organizar uma biblioteca
Tradução de Patricia Peterle