O ano é 1799. Relutante, o Japão mantém seus portos abertos para o comércio com os estrangeiros. Jacob de Zoet, um zelandês na casa dos vinte anos, desembarca em Dejima, a feitoria da Companhia Holandesa das Índias Orientais erguida a poucos metros de Nagasaki, a fim de ocupar o posto de escriturário. Ruivo, o que faz dele uma atração, De Zoet é chamado de komô, “bárbaro de cabelo vermelho”, pelos japoneses. Seu sobrenome vira “Dazûto” na pronúncia local.
A difícil relação com os japoneses, marcada pela desconfiança de ambas as partes, rivaliza com o conflituoso convívio com seus pares europeus. Jacob recebeu a missão de erradicar a corrupção de Dejima — em outras palavras, impedir que mercadorias ilegais deixem ou entrem na feitoria, além de atualizar os relatórios passados —, o que não contribui para sua popularidade entre os colegas. Abrindo ou fechando as temporadas de comércio, navios vêm e vão do quartel-general da Companhia em Batávia (hoje Jacarta), na ilha de Java, carregados de todo tipo de substâncias e objetos não declarados. As transações particulares e informais são tão frequentes que se tornaram corriqueiras, de modo que nenhum dos trabalhadores parece disposto a abrir mão dos trambiques que complementam seus rendimentos — tampouco a admitir que a prática é inadequada. “Que homem não é o sujeito mais honesto do mundo aos próprios olhos?”, pergunta Arie Grote, um cozinheiro capaz de “vender bosta de ovelha aos pastores” graças à lábia e à esperteza que desenvolveu ao longo de uma vida de privações.
São essas descrições eficientes, aliadas a um ótimo repertório de trejeitos e costumes, que fazem de David Mitchell um perito na construção de personagens. Quase todos os homens de Dejima têm sua trajetória dramática relatada em poucas linhas e em suas próprias palavras — breves passagens que, com a habilidade do autor, são suficientes para garantir que todos adquiram bons contornos. No geral, os europeus da feitoria são sobreviventes da fome e do abandono que (no sentido da anuência mais básica) não optaram pela vida que levam. Apesar de seu aspecto algo sombrio, nenhum deles escapa do humor escancarado de Mitchell. É o caso do ambicioso Peter Fischer, também escriturário; do chefe de Dejima, o dissimulado Unico Vorstenbosch; e de Melchior van Cleef, o carismático chefe adjunto. Um dos mais curiosos é Marinus, um médico que, ao contrário da maioria, vai a Dejima por livre e espontânea vontade. Marinus, cujo maior prazer é acumular e transmitir conhecimento, dá aulas a um punhado de aprendizes japoneses. Há apenas uma mulher entre eles, a parteira Aibagawa Orito — com a cicatriz que lhe cobre um dos lados da face —, por quem, é claro, Jacob de Zoet se apaixona. Junte alguns intérpretes que circulam por ali, como Uzaemon ou Kobayashi, e temos um bom time escalado para a primeira parte do livro.
No início, entretanto, o romance parece não decolar. O presente, que mostra o começo de uma temporada comercial em Dejima, é um tanto estéril. O livro é narrado em períodos curtos — o que pode significar uma frase por parágrafo —, escolha que força um avançar lento e truncado. Todavia, se Mitchell é hábil na composição de personagens, também é mestre em fabricar bons diálogos — e, de saída, estes são os únicos atributos capazes de sustentar a atenção do leitor. Como num jogo de bilhar, porém, Mitchell dá suas tacadas de modo a colocar as coisas em suas devidas perspectivas e posições. Aqui e ali, certos elementos são conduzidos às suas marcas, prontos para se chocarem uns com os outros ao menor toque — percorrendo, a partir daí, uma trajetória milimetricamente calculada. O romance engrena. Avançadas algumas páginas, Os mil outonos de Jacob de Zoet começa a ganhar os vultos daquilo que virá a se tornar: um livro incrivelmente divertido.
A segunda parte do romance pouco tem a ver com a primeira. Os holofotes já não estão voltados para De Zoet, e sim para Aibagawa Orito e Ugawa Uzaemon. O portão que separa Dejima de Nagasaki e do resto do Japão foi cruzado. Se de início o foco da trama é a rotina dos homens na feitoria de Dejima, com suas tramoias e tensões internas, o que se segue é uma sequência peculiar — uma aventura com samurais, raptos, conspirações, fugas e uma seita sinistra com fortes contornos misóginos. Muitas páginas são gastas aí, decepcionando quem esperava que Jacob de Zoet, incorruptível e diligente, ocupasse o centro do romance. Depois, novamente, o avançar da trama é interrompido quase bruscamente, e lá está, na terceira parte, uma fragata inglesa comandada por um capitão chamado Penhaligon. (Outro bom personagem, aliás. Penhaligon sofre de gota, mas prefere esconder a doença da tripulação. Com sua imaginação fértil, antecipa glórias que podem não chegar.) A fragata ancora nas proximidades de Dejima, e a trama volta para o ponto em que havia sido interrompida pela primeira vez.
As quebras na trama são arriscadas, e somente um autor muito habilidoso ou muito imbecil escolheria romper o ritmo de forma tão repentina — e não uma, mas duas vezes. Felizmente, David Mitchell é do tipo habilidoso. Note que, com pequenos ajustes, o livro poderia prescindir da segunda parte, bastando a primeira e as últimas para que houvesse um enredo com início, meio e fim. Seria, contudo, um enredo acanhado. Sem o recheio mirabolante, o livro perde boa parte de sua estranha força.
Graças à segunda parte, é fácil ver Os mil outonos de Jacob de Zoet como um romance de aventura. Nesse caso, é preciso levar em conta certo sentimentalismo e agilidade que caracterizam o gênero. Prepare-se para mortes melodramáticas, uma (espécie de) batalha marítima e maquinações das mais extravagantes. A despeito do ritmo acelerado, Mitchell coordena bem a vida interior dos personagens, sobretudo, é claro, a de Jacob de Zoet. A ambientação é outro ponto forte da narrativa.
O cristianismo ameaça se alastrar pelo Japão, mas é reprimido com violência pelo xogum. De Zoet, assim como os demais homens da feitoria de Dejima, estão proibidos de portar qualquer símbolo de sua fé — até o pequeno saltério que Jacob mantém escondido poderia causar problemas se fosse descoberto. As ideias iluministas também alcançaram o país asiático, mas, no geral, encontram não só tolerância como um bom acolhimento. Pouco a pouco, a despeito da resistência, os antigos valores vão sendo substituídos. “Houve uma época em que a nobreza e os samurais mandavam no Japão, […] mas quem governa agora é a Traição, a Ganância, a Corrupção e a Luxúria”, confessa o magistrado Shiroyama, figura que desempenha um papel decisivo na trama. Apesar de sincero, o desabafo de Shiroyama não é neutro nem desinteressado: seu ponto de vista é o de um japonês da nobreza para quem a manutenção da antiga ordem é de extrema importância. Como todos os personagens do livro — como qualquer um em qualquer tempo —, Shiroyama cultiva suas próprias ideias e preconceitos. Eis a chave mais importante do livro: Os mil outonos de Jacob de Zoet é um romance em que todos temem o outro, o estrangeiro, o desconhecido.
Os europeus desconfiam dos japoneses, e vice-versa — embora os primeiros, especialmente por sua condição de visitantes, tenham muito o que aprender quando o assunto é cortesia. As ofensas e os adjetivos vão desde “esses salafrários de uma figa” até expressões piores. Ironicamente, quando vistos pelos olhos dos ingleses ou dos holandeses, são os japoneses que parecem pouco civilizados. Por essas e outras, causa algum estranhamento constatar que Mitchell, nas cenas que se passam em Nagasaki e adjacências, optou justamente por uma sucessão de clichês sobre o Japão, ressaltando o (suposto) exotismo que costuma despertar a curiosidade dos ocidentais. Quanto a isso, no entanto, sobretudo pelas pretensões do livro, convém não teorizar em excesso. Samurais e gueixas são figuras fáceis em episódios cujo grande (e único) objetivo é divertir. Como uma piscadela marota para o leitor, Mitchell entrega um Japão pitoresco, ainda que irreal. Funciona.
O céu baixo está manchado de pássaros. O outono está ficando velho.
Com ou sem chavões, ou justamente por conta deles, Mitchell satiriza as tentativas canhestras dos europeus de processar o que veem a partir de estereótipos. O fato de todos naquela época — Napoleão está em ascensão — detestarem os franceses é motivo de piadas recorrentes. É claro que há, como em qualquer livro de ação que se preze, uma boa lição por trás de tudo. “É preciso tomar cuidado na hora de entender o inimigo para não correr o risco de passar para o lado dele”, observa o capitão Penhaligon, que não parece se dar conta do que acaba de dizer. Todo estereótipo, é claro, procura dar conta de algo insondável — e portanto assustador. A ignorância é o gatilho do medo, que por sua vez é o gatilho da hostilidade. Não é à toa que o macaco William Pitt — que recebeu o nome do estadista britânico que não conseguiu deter Napoleão —, outra grande figura da feitoria de Dejima, grunhia “com uma animosidade um tanto humana”. Os humanos, no geral embrutecidos pela vida no mar, contemporizam pouco e rosnam muito.
Quando, em uma das melhores cenas do livro, Jacob de Zoet pergunta ao doutor Marinus em que ele acredita, este diz crer “na metodologia de Descartes, nas sonatas de Domenico Scarlatti, na eficácia da lábia dos jesuítas…”. E emenda: “Tão pouca coisa merece crença ou descrença. Melhor lutar para coexistir do que perder tempo refutando”. Se não é exatamente a atitude que se espera de um homem da ciência, David Mitchell se apressa em esclarecer que Marinus é um “sonhador cínico”. É a melhor definição possível — e, talvez, a postura mais acertada em tempos de fragatas que cospem bombas e espadachins treinados.
É claro que é preciso avaliar um livro por aquilo que ele é. O romance de David Mitchell, com tudo o que caracteriza o gênero, é uma boa aventura. Seu único (e talvez irrelevante) defeito é tomar, vez ou outra, certos atalhos ou saídas fáceis demais. Algumas cenas, em um enredo que não é exatamente dado a sutilezas, são deixadas para a imaginação do leitor, como se descrever uma e outra fugisse à competência de Mitchell. Seja como for, as omissões não chegam a comprometer o resultado final. Como apontou a resenha do The Scotsman citada na contracapa, Os mil outonos de Jacob de Zoet “é definitivamente uma obra-prima”.
Oi, Camila.
adorei a crítica, principalmente, o divertidíssimo.
Coloquei na fila, ando lendo coisas muito sérias, preciso urgente de algo mais leve.
Obrigada pela sugestão. ainda não li nada desse autor.
Beijos
Li o livro faz pouco mais de um mês e gostei bastante do todo dele. As descrições dos ambientes e o roteiro dão de mão beijada o roteiro de um ótimo filme.
Porém o final é um completo anticlímax, que como você apontou busca uma saída muito fácil e me desapontou mais do que eu imaginava. Ainda sim é uma leitura muito recomendada para entender um pouco mais sobre a cultura japonesa.
Bom dia, pessoal.
Trabalho na nVersos Editora.
E, gostaria de saber como vocês trabalham com parcerias?
Oi, Juliana,
Clicando em “Sobre” você veria que não há “pessoal” ou “vocês”: o Livros abertos é feito por uma pessoa só. 🙂 Lá também consta e-mail para contato.
Acabei de ler o livro. Gostei muito. Sua resenha é precisa ao apontar a existência de trechos e passagens enfadonhas, mas ao final tudo converte para um encaixe que eu, pessoalmente, achei muito bom. A meu ver o romance já mereceria aplausos por fugir das fórmulas fáceis dos livros do gênero. Mas além disso, como destacado por você, a construção das personagens é um dos pontos altos do romance. Eles têm vida, têm suas histórias.
Um detalhe que achei bastante interessante, e até comovente, é a integridade moral de Jacob. No início o tomamos por um homem fraco e acovardado. Hesita muitas vezes diante de quase tudo. Mas, a despeito do medo que sente, não se corrompe. Ao final, tudo aquilo no qual acreditava e pelo qual o tomavam como um fraco, mostrou-se a sua maior demonstração de força. Alguns fanfarrões sucumbiram e vergaram-se nas horas críticas. Jacob, porém, mesmo com medo, mesmo sem saber se sobreviveria, manteve-se fiel ao que acreditava – espiritual e moralmente. Achei isso poderoso.
Mais uma excelente resenha, como de hábito.