Leia também a entrevista com o autor.
Um artista, José de Arariboia, sobe o morro da comunidade Pavão-Pavãozinho. Sua expressão vazia não permite que se detectem sinais de alguma emoção ou intenção. Horas depois, ele deixa o lugar gingando — simulando ou executando uma espécie de dança, e nessa diferença sutil, nunca esclarecida, reside uma das chaves do livro. Completando o quadro inusitado, o artista está nu. Ele logo atrai uma multidão de curiosos, e o que se tem é uma espécie de procissão, liderada por Arariboia, que termina na praia de Copacabana. No mesmo dia, vídeos da performance começam a surgir no YouTube. Biribó, um traficante com pretensões artísticas, disponibiliza a própria gravação. Não demora para Arariboia e Biribó iniciarem uma estranha parceria.
Tanto o início de A vista particular quanto sua narração peculiar, estabelecida logo de saída, dão uma falsa noção de simplicidade. É fácil acreditar que se está diante de um livro muito diferente do que aquele que acaba por emergir. No novo romance do escritor Ricardo Lísias, um narrador distanciado é o responsável por conduzir a trama. Ele não é onisciente, mas parece saber mais do que entrega. Emulando um romance do século 19, a abertura de cada capítulo traz um resumo do que está prestes a acontecer. O narrador e o apregoador (por sua natureza autônoma, não parece errado defini-lo assim) não são a mesma entidade, mas, ao contrário, entram constantemente em conflito. Não há qualquer informação sobre eles. Mesmo os personagens, a cuja consciência o narrador não tem livre acesso, sofrem com a indefinição. Com exceção de alguns detalhes — as covinhas de Biribó, os dentes pretos de José de Arariboia —, não há contornos nítidos.
Parece artificial, e a intenção é essa — revelar o lado avesso, o mecanismo pelo qual se põem significados em movimento. Ao subverter um dos truques de um romance antigo, A vista particular joga com a própria literatura. O expediente só não soa batido graças àquilo que pretende discutir e à forma como leva a intenção a cabo: ora com humor, ora com brutalidade, mas jamais de maneira explícita, o narrador de Lísias questiona as possibilidades e os limites da arte.
No início do livro, Arariboia é apenas um pintor promissor de idade indefinida. Tem um portfolio com trinta quadros e coleciona algumas críticas favoráveis. Embora os títulos dos quadros encerrassem, segundo o narrador, algum significado, não havia a necessidade de justificar um trabalho (mais ou menos, é o que podemos entender da descrição) figurativo. Quando muda de plataforma, Arariboia não altera a postura, talvez porque o personagem não consiga pensar em qualquer justificativa para aquilo que faz — mesmo considerando que boa parte da arte produzida de algumas décadas para cá pode ser entendida sobretudo através do comentário, do subtexto, da legenda. Só há um indício de que o personagem está consciente do que faz: a cada mudança de plataforma ou de estilo, o artista vai mudando de nome. De José de Arariboia, passa a assinar Zé de Arariba. Depois, Arara.
Com a ajuda e a autorização de Biribó, a própria favela se transforma em uma obra de arte. Com exceção de algumas etiquetas descritivas, não há intervenção alguma: o próprio espaço, com os moradores vivendo ou simulando viver suas vidas, constitui a obra do artista. É como se Arariboia representasse instalações, que incluíam desde um criadouro de mosquitos da dengue a uma igreja evangélica. Além disso, alguns filmes de Biribó eram exibidos aos expectadores. E só.
Estamos na época das Olimpíadas, e todos os olhares se voltam para o Rio de Janeiro. A comunidade Pavão-Pavãozinho — uma entre várias — só recebe atenção porque se transforma na obra de arte de José de Arariboia. Quando a narrativa começa a reforçar os contornos surreais, toda a favela é remontada em outro lugar. Do tráfico de drogas à truculência policial, tudo vira uma performance: é a mimese levada ao extremo. “Razão estética no olho dos outros é refresco”, comenta o narrador.
Há uma tensão permanente entre estética e ética em A vista particular, ainda que não se possa dizer que ela esteja no centro da trama. Um galerista, ao que tudo indica, fez fortuna no Brasil ao comercializar quadros roubados de famílias vítimas do nazismo. A obra de José de Arariboia também é cercada de conflitos. Quando Arariboia, a despeito de suas manobras duvidosas, começa a ganhar espaço dentro e fora do país, imaginamos um cenário mais feliz em que a arte fosse não só valorizada como amplamente discutida. Desse ponto de vista otimista, seria possível encarar uma realidade ou iniciar uma discussão urgente quando algo se torna obra de arte — o poder de denúncia e transformação da arte etc. Aqui começam os problemas, dos quais o narrador está ciente. 1) As implicações éticas do que Arariboia faz, seja qual for a intenção do sujeito, não são discutidas; 2) Naquilo que realmente importa, a obra também não é posta em discussão, de modo que o caráter de denúncia acaba esvaziado de sentido; 3) A obra de Arariboia faz sucesso porque é cercada por polêmicas, que remontam à aparição do artista no YouTube. Tudo é transmitido como entretenimento barato e sensacionalista. A exposição só atrai atenção quando é televisionada.
Moralista, a (ex-)galerista de Arariboia vê o escândalo da dança de forma negativa. Para ela, “ficar em evidência nas redes sócias” pode ser “bastante perigoso, sobretudo para quem precisa se concentrar em um tipo de atividade tão exigente quanto a arte”. Por um lado, a mulher vê a arte como uma esfera elevada à qual só são admitidos alguns escolhidos. Em contraste, aquilo que é apresentado como um entretenimento de massa — feito sob medida para entreter e divertir o público — perde, como a obra de Arariboia, algo caráter questionador e transformador. “Há de fato uma ambiguidade: arte ou espetáculo?”, pergunta o narrador.
A situação esdrúxula proposta por Lísias procura evidenciar sobretudo a invisibilidade dos moradores da favela. Quando uma criança morre baleada na exposição de Arariboia, é chamada pelo narrador — com ironia, uma vez que ele não apenas está ciente do jogo como conduz o leitor por esse jogo — de “Menino Negro”. Mais do que um consumo turístico da miséria, a obra de Arariboia permitiria o pretenso consumo artístico: um produto que entretém a classe média que se acredita esclarecida.
Nessa trama cada vez mais absurda, a crítica ou não se pronuncia, ou não toca nos pontos realmente essenciais. Tudo é discutido, menos o que importa. Um crítico pergunta se há “alguma pulsão de morte na obra de Zé Arariba”, o que parece um pouco tolo. Toda a questão política é deixada de lado.
A vista particular é sobretudo um livro desconfortável. Ainda assim, é bem possível que alguns leitores cheguem à última página do livro elogiando a trama pitoresca e divertida. Não é bem isso. Da matéria-prima utilizada pela arte à forma que o artista dá a ela, Ricardo Lísias discute o que aprendemos a encarar como natural.
Mas olha que coisa, achei que o ano havia encerrado por aqui!
Voltei para caçar a resenha de Graça Infinita (sim, acho aquela resenha uma das coisas mais bem montadas que eu já vi na vida e venho ler sempre, parabéns!) e tem resenha nova. Muito bom! Essa foi a primeira obra do Lísias que li e dessa vez, além de ter concordado que é um bom livro, também tive a mesma visão que você, sem tirar nem pôr. Um livro cheio de subjetividades, incômodo e que oferece uma boa reflexão aos que realmente o leram.
Esse romance do Lísias, como primeira experiência, me pareceu uma baita casa de espelhos, daqueles que deformam cada parte do corpo, como num grande conjunto de caricaturas simultâneas. Não sei se a obra inteira dele é assim, mas pretendo ler em breve. Infelizmente já vi comentários dizendo que é um livro leve e divertido, apenas. Complicado, mas até entendo, as pessoas já se reconhecem no espelho que lhes é habitual, então não há necessidade de ver com outros olhos, a não ser que lhes forneça diversão. Espero que essa viagem sobre os reflexos tenha ficado entendível.
Releve meus devaneios e excelente resenha!
Adorei a analogia, Caio. É exatamente isso o que o livro faz. Obrigada pelos comentários sempre afiados. 🙂
Valeu, Camila! Arrisco umas resenhas no meu blog também, o Rede de Intrigas. Se puder, dê uma olhada lá rededeintrigas.wordpress.com 🙂 beijos.
Camila, não sei o que está melhor: entrevista ou resenha.
Parabéns pelo belíssimo trabalho realizado no blog.
Resenhas, críticas , lucidez , criatividade, responsabilidade, me emociono e aprendo sempre.
Não encontro palavras a não ser obrigada, Camila!
Beijos
Muito obrigada pela leitura atenha, Graça! Um ótimo 2017. Grande beijo!