“Velho” e “novo” são os polos permanentes de todo sentimento e de todo sentido de orientação no mundo. Não podemos viver sem o velho, porque no velho se encontra investido todo o nosso passado, nossa sabedoria, nossas memórias, nossa tristeza, nosso sentido de realismo. Não podemos viver sem a fé no novo, porque no novo se encontra investida toda a nossa energia, nossa capacidade de otimismo, todo o nosso cego anseio biológico, nossa capacidade de esquecer — o dom de curar que torna possível toda reconciliação.
A vida interior tende a desconfiar do novo. Uma vida interior desenvolvida com vigor será especialmente refratária ao novo. Dizem-nos que temos de escolher — o velho ou o novo. Na verdade, temos de escolher ambos. O que é uma vida, senão uma série de transições entre o velho e o novo?
— Susan Sontag
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O narrador de Enclausurado, novo romance do inglês Ian McEwan, é ninguém menos que um feto. “Então aqui estou, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher”, inicia ele. O feto não tem nome, detalhe que não parece perturbá-lo — é, aliás, uma das poucas coisas que não o perturbam. Todo o resto, da condição dos imigrantes na Europa à situação do ensino nas universidades, pode deixá-lo angustiado.
Nas primeiras páginas, como se fizesse uma confissão, o feto relata o momento em que se tornou consciente. É fácil lembrar da cena em que Cal Stephanides, o narrador criado por Jeffrey Eugenides em Middlesex, descobre o que é a visão. “Não pode ser verdade, mas me lembro disso: faíscas lentamente preenchendo uma tela escura. Alguém tinha ligado meus olhos”, diz Cal. De forma parecida, o feto de McEwan descreve as sinapses que deram origem ao primeiro pensamento e à primeira ideia de si. Os dois personagens, porém, têm diferentes maneiras de compreender e explicar quem são e de onde vêm. Enquanto o artifício de Eugenides dá vida a um protagonista capaz de relatar o que ocorreu a seus pais e avós antes de seu nascimento — Cal é um extraordinário narrador onisciente—, o feto de Enclausurado depende das conclusões que tira a partir daquilo que entreouve quando cola o ouvido às paredes do útero.
Nos últimos tempos, porém, as conversas entreouvidas sugerem “intenções letais”. Três personagens, incluindo a mulher em cujo útero o narrador se encontra, protagonizam uma situação que aos poucos ganhará ares de trama policial: Trudy, a mãe, é uma jovem apática que passa os dias bebendo grandes quantidades de vinho; John Cairncross, o suposto pai, é um poeta e editor que pode ser tanto um resistente quanto um fracassado; Claude, o tio, tão diferente do irmão letrado quanto possível, é “um ignorantão”. A partir das iterações entre eles, registradas e comentadas pelo narrador, algo vai se delineando. O feto conclui que Claude e Trudy, que são amantes, planejam assassinar John.
Hamlet
Preso em um espaço mínimo, o feto é impotente. É um Hamlet não nascido, cuja vingança, se for concretizada, terá de ser adiada por muito mais tempo que a do protagonista de Shakespeare. Basta prestar atenção à epígrafe escolhida por McEwan: “Deus, eu poderia viver enclausurado dentro de uma noz e me consideraria um rei do espaço infinito — não fosse pelos meus sonhos ruins”. Retirada do Ato II, Cena II — um diálogo entre Hamlet, Guildenstern e Rosencrantz —, a passagem ressoa de várias maneiras dentro do enredo criado por McEwan.
A intertextualidade é bem ampla. Enclausurado tem, por exemplo, seus momentos teatrais: “Silêncio! Os conspiradores estão conversando”, diz o feto ao testemunhar os sussurros de Trudy e Claude. Os próprios paralelos menores excedem em muito o nome da mãe adúltera e do tio canastrão. Dois exemplos. 1) No romance, Claude apelida Trudy de “ratinha”; em Shakespeare, Hamlet, ao confrontar a mãe, sugere que a Rainha peça a Claudius para chamá-la desta forma. 2) Ao longo do livro de McEwan, o feto reforça a inferioridade de Claude em relação a John; é o que também fica claro em Hamlet. “[Seus] dons naturais são pobres e mesquinhos/ Comparados aos meus”, diz o Espectro sobre o Rei usurpador.
Como muda o contexto, mudam os problemas morais. O feto está envolvido na conspiração, mesmo que por omissão? Cúmplice ou não, ele nascerá com a mácula do crime planejado pela mãe. Nesse sentido, Enclausurado pode ecoar a noção do pecado original.
Consciência
Boa parte da graça do livro reside no descompasso grosseiro entre a figura do narrador e seus comentários — quando o simples fato de um feto fazer comentários já seria cômico. Caso McEwan entregasse um protagonista mais ou menos ajustado ao universo infantil, que não soubesse muito bem como interpretar o que escuta e conservasse certa inocência, o efeito seria bem diferente. O protagonista de Enclausurado, porém, está o mais distante possível daquilo que se espera de uma criança. Ele não rejeita um bom vinho, sobretudo um pinot noir. “Ah, estar vivo quando existe uma uva como essa!”, diz. Algo mais simplório que um Romanée-Conti, que o feto identifica pelos “toques picantes de cassis e cereja-preta”, rende comentários ferinos.
Ele usa expressões em latim. “Sunt lacrimae rerum”, diz, citando a Eneida. É bem visível que McEwan não cria um feto culto com gostos apurados, mas antes modifica a embalagem de um velhaco. A existência, hoje, de alguém que combina as opiniões, os interesses, as inclinações, o conhecimento e as referências do narrador de Enclausurado é levemente anacrônica. Não é à toa que algumas das declarações do protagonista brincam com a nostalgia, o pessimismo e a falta de entusiasmo. Prestes a nascer, ocupando todo o espaço disponível do útero, ele sente falta do tempo em que podia se mover livremente. “Isso foi na minha juventude despreocupada”, comenta.
É natural que o protagonista zombe da tendência, detectável especialmente nas universidades, de vetar opiniões e crenças que se mostrem “inconvenientes”, ou seja, contrárias àquelas que o estudante professa. O feto, que não é um exemplar das novas gerações e há muito não se relaciona com o universo infantil, não poderia compreender a imaturidade que está por trás dessa vontade. “Talvez eu precise de avisos prévios se livros ou ideias perturbadoras ameaçarem minha existência”, ironiza ele. No fim das contas, o narrador de McEwan é um ancião (possivelmente mais velho do que o próprio autor) que vê um mundo conhecido morrer. Como se Enclausurado fosse uma espécie de releitura peculiar de O curioso caso de Benjamin Button.
U de Ulysses
Há uma segunda interpretação disponível, não totalmente oposta à anterior — mas que vai desembocar em outra gracinha de McEwan. Se algo como um feto intelectualizado fosse possível, como e onde o narrador coleta as informações que manipula ao longo da narrativa? Tudo indica que é auxiliado por aquilo que ouve: além dos programas de rádio, Trudy acompanha uma boa variedade de podcasts; também alterna áudios de livros, incluindo os clássicos. (O feto adora Ulysses.) Nada disso é elaborado como um estímulo para o bebê em formação. A ausência de um nome para o filho que vai nascer, além das muitas taças de vinho emborcadas em sequência, indicam que Trudy não espera por ele com entusiasmo.
O que se tem, então, é um feto preocupado com “o estado das coisas”, preocupação que seria “a contrapartida do espinhoso dom da consciência”. É preciso considerar que o narrador tem uma ideia bastante aproximada de como seria o mundo; defende suas posições com argumentos lógicos e articulados; compreende de maneira quase intuitiva a maior parte das circunstâncias que relata. Ele é, enfim, um narrador completo. Pouca coisa além de um racionalismo sui generis — adaptado para o contexto bizarro criado por McEwan — explicaria o brilhantismo do feto. É aqui que a ironia do escritor se manifesta com mais força. Não seria propriamente a experiência que forneceu ao protagonista o entendimento que ele possui. “Assim que eu sair daqui e estiver em condições, vou tentar escrever um ensaio. O mundo clama por novos empiristas”, debocha o narrador de McEwan. É de longe a melhor piada do livro.
Uma recuperação
A epígrafe deste texto foi retirada de “Literatura é liberdade”, uma conferência pronunciada por Susan Sontag na abertura do prêmio Oscar Romero e incluída em Ao mesmo tempo. “A literatura pode ser definida como a história da receptividade humana em relação ao que está vivo e ao que está moribundo”, diz Sontag. Não sem resistência ou nostalgia, é esse o exercício de McEwan em Enclausurado — que entrega de forma quase literal aquilo que é descrito por Sontag. Num olhar para o futuro que é ao mesmo cauteloso e fascinado, o velho mundo é encarnado num feto.
Na mesma conferência, Sontag fala de como a literatura a ajudou nos seus tempos de estudante no Arizona, “à espera de crescer, à espera de fugir para uma realidade mais ampla”. Segundo ela, a literatura foi responsável por aliviar um tipo específico de clausura. “A literatura era o passaporte para entrar numa vida mais ampla; ou seja, a região da liberdade.”
Não são apenas as elucubrações do feto que têm lugar em Enclausurado. Os ardis tramados por Trudy e Claude cada vez mais vão dando lugar a um enredo de suspense. É notável a habilidade de McEwan para unir todas as pontas soltas do plano macabro do casal de amantes. “Isto não está bem e nem acabará bem”, diz Hamlet no início da peça. O desfecho do livro é previsível, mas não poderia ser outro.
Para Ian McEwan, Enclausurado é uma ótima recuperação depois do medíocre A balada de Adam Henry. O que se sobressai não é o pessimismo ou o otimismo, mas um humor que tanto pode derivar de um quanto do outro. É impossível não rir com e do feto. Toda a sua construção — o absurdo da coisa levado ao limite — é formidável.
Se a realidade pode parecer muito pequena, como disse Susan Sontag, nada como um romance que a extrapola a tal ponto para ampliá-la.
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As citações de Hamlet foram retiradas da edição da Penguin-Companhia. A tradução é de Lawrence Flores Pereira.
Camila, acabo de me apaixonar por você, isto é, por seu texto. Cheguei aqui por acaso, por meio de uma pesquisa no google que me conduziu à resenha de “O círculo” e uau! o que foi isso? Um soco no estômago? Concordo com Susan Sontag que a literatura nos transporta para outros mundos, geralmente melhores (aliás, essa é uma ideia bem arraigada, meio clichê até). No caso dos seus textos, foi exatamente o que aconteceu comigo, fui transportado para um mundo melhor, o dos argumentos consistentes e dos textos bem escritos. Posso dizer que tive vários orgasmos literários, se me permite a expressão um tanto chula. Tenho a pretensão de dizer que escrevo também (quando a preguiça permite), mas de vez em quando me deparo com textos que me deixam inseguro, com um pensamento mau que martela insistentemente: será que um dia serei capaz de escrever assim? Senti isso ao ler seu texto. Sobre a resenha, sou louco por Ian MacEwan há muito tempo. Leio tudo dele. Fico contente de ler uma resenha elogiosa sobre o novo romance, uma que me estimula a mergulhar de cabeça nele o quanto antes. Muito obrigado por tornar meu amor por MacEwan mais profundo e parabéns pelo blog. Virei fã.
Oi Camila!
Sempre leio as suas resenhas depois de ler os livros, e confesso que é sempre o complemento reflexivo de que preciso!
Li o livro em questão há algumas semanas e não sei muito bem o que pensar sobre ele. Eu definitivamente AMEI o narrador feto! Acho que não é possível não gostar.Ele é o que faz com que o livro seja acima da média, na minha visão. Mas eu não sei, algo no triângulo amoroso e na trama policial pareceu forçado e eu não consegui entrar direito na história. Em todo momento que o foco era a trama em si, e não as deliciosas divagações do feto, eu me sentia como se estivesse assistindo uma novela das oito. Não sei se só eu tive essa sensação, mas em mim foi bem forte.
Enfim, continue nos presenteando com esses textos tão maravilhosos!
Abraços!
Obrigada pela leitura e pelo comentário, Leticia. 🙂 Sim, Enclausurado tem esse tom farsesco. Também tive a sensação de acompanhar uma trama policial de qualidade duvidosa. Mas a intenção do autor é justamente essa: ressaltar a farsa, o teatral, o artifício. Por isso, em parte, a alusão a Hamlet, e por isso também o descompasso entre o que se espera de um feto (jamais uma narração) e o que o feto narrador entrega. Abraços!